domingo, 28 de maio de 2017

AMÉRICA, AMÉRICA


AMÉRICA, AMÉRICA (1963)

Principia-se por ouvir a voz de Elia Kazan: “O meu nome é Elia Kazan. Tenho sangue grego, sou turco por nascimento e americano porque o meu tio fez uma viagem”. E continua a narrativa: “Esta história foi-me contada pelos mais velhos da família. Eles recordavam a Anatólia, esse planalto no centro da Turquia. A Anatólia também é arménia e grega, mas há 500 anos os turcos conquistaram-na. A partir daí, houve conquistadores e conquistados”.
Assim se inicia “América, América”, filme obviamente autobiográfico, mas de um tipo de autobiografia coral. Não é só a vida de Elia Kazan que nos é contada, mas a de muitos e muitos emigrantes gregos, arménios, turcos, e de tantas outras origens que demandaram a América enquanto símbolo de uma terra prometida. 
Elia Kazan (Elias Kazanjoglou era o nome de baptismo) nasceu em Constantinopla, cidade então do Império Otomano (hoje Istambul, na Turquia), a 7 de Setembro de 1909. Mas foi grego o registo da sua nacionalidade, dado que os pais tinham essa origem. Aos quatro anos de idade, a família emigrou para Nova Iorque e leva-o consigo, perseguindo sonhos e quimeras que a América, terra das oportunidades, não deixava de criar nos pobres europeus do velho continente. Estabeleceram-se com um negócio de tapetes, e Elia começou os seus estudos em Nova Iorque, passando depois para a Mayfair School de New Rochelle, para onde os pais se mudaram, vindo a terminar o curso no Williams College, em 1930, prosseguindo depois uma especialização no Drama Department of Yale, dando assim vazão à sua paixão pelo teatro. 
Em 1932, é actor e assistente de encenação no Group Theatre, uma companhia teatral formada há muito pouco por Lee Strasberg e Harold Clurman. Por essa altura, na cena nova-iorquina, este grupo e o Federal Theatre, de Orson Welles e John Houseman, eram as companhias de vanguarda, destacando-se quer pelas suas ideias progressistas, radicadas nos ideais do “New Deal”, de Roosevelt, mas também nas ideologias socialistas e comunistas, muito em voga nessa época nos meios intelectuais norte-americanos, quer pelo arrojo formal da sua concepção cénica.
Como actor, Kazan interpreta personagens proletárias de obras de Clifford Odets, dedica-se a acções de empenhamento social, distribui propaganda e filia-se no Partido Comunista, onde permanece pouco tempo. Desse período de actor retêm-se as suas participações em peças de grandes autores norte-americanos, nomeadamente Clifford Odets. Durante este período de aprendizagem, foi decisivo o seu trabalho com encenadores como Lee Strasberg, Clifford Odets ou Harold Clurman. Pouco depois de se estrear como actor, e de passar por algumas outras tarefas, como director de cena e produtor, encena já algumas das peças que irão figurar no seu registo mítico e que o transformaram numa lenda viva, ao criar uma das mais vertiginosas e retumbantes carreiras teatrais de todos os tempos. 
Em 1947, cria o “Actor’s Studio” juntamente com Lee Strasberg, e com “All My Sons”, de Arthur MiIIer, uma produção Harold CIurman, EIia Kazan, WaIter Fried e Herbert H. Harris, no Coronet Theatre, inicia a sua época de ouro como encenador, continuada com “A Streetcar Named Desire”, de Tennessee Williams, que representa o triunfo do “Método”, criado pelo “Actor’s Studio”. 1948 fica marcado por “Sundown Beach”, de Bessie Breuer, e “Love Life”, de Alan Jay Lerner, 1949 é o ano de “Death of a Salesman”, de Arthur Miller.
“Flight Into Egypt”, de George Tabori (1952), “Camino Real”, de Tennessee Williams (1953), “Tea and Sympathy”, de Robert Anderson, “Cat on a Hot Tin Roof”, de Tennessee Williams (1955), “The Dark at the Top of the Stars”, de William Inge (1957), “J. R.”, de Archibald MacLeish (1958) e “Sweet Bird of Youth”, de Tennessee Williams (1959) são outros espectáculos memoráveis.
Em 1964, depois de um curto período de ausência dos palcos, Kazan regressa com as encenações de “After the Fall”, de Arthur Miller, “But For Whom Charlie”, de S. N. Behrmano e “The Changeling”, de Thomas Middleton e William Rowley, todas com produção do Repertory Theater of Lincoln Center no ANTA Washington Square Theatre. 
Durante grande parte desta carreira teatral, Kazan combinou este trabalho no palco com o de realizador de cinema. A sua derradeira colaboração com o teatro foi a co-direcção do Repertory Theatre of Lincoln Center for the Performing Arts, que teve a seu cargo entre 1963 e 1964, abandonando definitivamente os palcos depois disso. A sua actividade teatral permitiu-lhe dirigir directamente alguns dos maiores actores do teatro e do cinema norte-americanos, tais como Van Heflin, Lee J. Cobb, Frances Farmer, Will Lee, Ruth Gordon, E. G. Marshall, Montgomery Clift, Fredric March, Burl Ives, Barbara Bel Geddes, Jan SterIing, Ed BegIey, Arthur Kennedy, Karl Malden. MarIon Brando, Kim Hunter, Jessica Tandy, Martin Balsam, Julie Harris, Cloris Leachman, Arthur Kennedy, Zero Mostel, Paul Lukas, Jo Van Fleet, Frank Silvera, Eli Wallach, Deborah Kerr, Ben Gazzara, Pat Hingle, Teresa Wright, Chritopher Plummer, Raymond Massey, Paul Newman, Geraldine Page, Jason Robards, Faye Dunaway, Ralph Meeker, Hall Holbrook, Barry Primus, ou mesmo alguns cineastas que atravessaram períodos de carreira como actores, casos de Martin Ritt, Nicholas Ray, Lou Antonio, entre outros.
A partir de 1945, Kazan passa ao cinema, convidado pela 20th Century Fox para integrar a sua equipa de realizadores, numa altura em que os estúdios norte-americanos procuram avidamente novos talentos. Elia Kazan fora para Hollywood depois do Group Theatre fechar as portas. Em Hollywood, intervém como actor em duas películas de Anatole Litvak: “City for Conquest” (1940) e “Blues in the Night” (1941). Antes, porém, ainda bastante jovem, já havia colaborado numa comédia, ainda na década de 30, “Pie in the Sky” (1934) e tentado a realização com dois documentários institucionais, “The People of the Cumberlands” (1937), uma produção Frontier Films, e “It's Up To You” (1941), uma produção do Ministério da Agricultura.
Mas a estreia no filme de ficção dá-se precisamente em 1954, com “A Tree Grows in Brooklyn”, história de uma família de emigrantes irlandeses, aliás um dos temas que mais fortemente irá impregnar toda a filmografia deste autor, profundamente preocupado com a inserção social das suas personagens. Isso mesmo se irá confirmar nas suas realizações seguintes, “Boomerang” (1947), que aborda a justiça, os seus mecanismos e a possibilidades do erro judiciário, ou “Gentleman's Agreement” (1947), denunciando o racismo, neste caso o anti-semitismo. Será, todavia, em “Panic in the Streets” (1950), um “filme negro” invulgar que se irá impor como um nome incontornável na cinematografia norte americana dessa época. Posteriormente, em 1951, dirige Marlon Brando em “Um Eléctrico Chamado Desejo” (sua primeira adaptação teatral ao cinema) e “Viva Zapata!” e, posteriormente, em “Há Lodo no Cais” (1954). Por esta altura, numa época em que o Maccarthismo ameaçava a sociedade norte-americana, Kazan protagoniza um episódio chave da sua vida, denunciando companheiros de trabalho que pertenceram, como ele, ao Partido Comunista, publicando um anúncio onde confessava essas actividades, e depondo perante a Comissão das Actividades Anti-americanas. Esta sua atitude iria marcar todo o seu futuro, em particular a sua obra, que irá procurar justificar o seu comportamento. “Há Lodo no Cais” e “Viva Zapata!” são algumas dessas etapas.
Em “On the Waterfront”, escrito por Budd Schulberg, Kazan, através da personagem interpretada por Marlon Brando, tenta fazer perceber aos outros a lógica da sua denúncia, servindo-se de um caso de corrupção no ambiente do sindicalismo. O delator confronta-se com a sua consciência, mas um imperativo moral leva-o a denunciar (falsos) amigos e a pôr a claro a podridão que campeia numa organização mafiosa.
Em 1955, roda “A Leste do Paraíso” com um novo actor em quem deposita toda a confiança, voltando a acertar em cheio: James Dean brilhará para sempre como o retrato do jovem revoltado “sem causa”, que ainda sobrevive presentemente na mitologia mundial. “Esplendor na Relva” (1961), segundo John Steinbeck, é outra das suas obras assumidamente autobiográficas, até se chegar a “America, América” (1963), que fala directamente de si, da sua chegada à América e da sua família. Os seus últimos filmes são “O Compromisso” (1969), uma adaptação de um romance seu que é outro momento confessional, “Os Visitantes” (1972), uma obra experimental, com poucos recursos, percorrendo os caminhos imaginados pelo escritor Chris Kazan, seu filho, anunciando então a sua retirada também do cinema. Mas regressa com “O Último Magnate” (1979), dirigindo outro monstro sagrado, Robert De Niro, e onde empreende uma meditação sobre Hollywood e o cinema. 
Falando abertamente de “América, América”, esta obra inicia-se em 1896. Stavros Topouzoglou (Stathis Giallelis) é um jovem nascido na Anatólia, numa altura em que a região era dominada por turcos, muito embora ali vivessem gregos e arménios como povos subjugados. Com alguns anos de atraso, poderia bem ser o caso de Elia Kazan. Stavros vive desde há muito obcecado pela ideia de partir para a América, terra das grandes oportunidades. Caminhando pela terra inóspita da Anatólia, ao lado de um tio, vai-lhe perguntado se na América há montanhas tão grandes quanto aquelas, ao que o tio lhe responde: “Na América é tudo maior”. O sonho de Stavros transborda. Entretanto, um grupo de arménios assalta um banco em Constantinopla, a repressão turca recrudesce, os pais de Stavros enviam-no para a Constantinopla para junto de um familiar que vende tapetes (tal como os pais de Kazan). Mas Stavros não pensa em ficar, mas em partir. Atravessar os oceanos e descortinar no horizonte a Estátua da Liberdade. Até lá chegar, muito terá de penar, de sofrer, de não desistir a cada nova contrariedade, a cada embuste, a cada nova traição. A sua fé é tão grande que Stavros já é conhecido por “América, América”. 
O filme, rodado a preto e branco, com uma imagem contrastada de Haskell Wexler, é brilhante na criação de ambientes, no desenho das personagens, no desenrolar das situações, no rigor e na contensão que impõe aos sentimentos e às emoções. Nesse aspecto, a direcção artística de Gene Callahan é soberba na justeza, bem como a montagem nervosa de Dede Allen. A música de Manos Hatzidakis integra-se perfeitamente neste universo de uma claustrofobia contagiante, que só a fé desmedida de Stavros contraria. A sua esperança na chegada à América resiste, mesmo para lá da completa desilusão que é enfrentar uma realidade igualmente hostil e violenta, onde as desigualdades sociais e a aspereza das condições de sobrevivência não diferem muito das que conhecia na Anatólia. 
Este filme é uma memória viva, a consciencialização de uma realidade em confronto com os sonhos. A verdade é que Ela Kazan, o cineasta, triunfou na América e a sua história é um pouco a concretização de um sonho e a confirmação da América como a terra da esperança e das oportunidades. Mas por alguém que triunfa, quantos sonhos não esbarram no maior dos infortúnios? Kazan, agradecido à América, não deixa de apontar o olhar crítico a uma terra com tudo para ser também madrasta.  Resta dizer que os actores são brilhantes e que “América, América” demonstra, sem sombra para dúvidas, que aquela foi, e é, uma terra de emigrantes. 

AMÉRICA, AMÉRICA 
Título original: America America 
Realização: Elia Kazan (EUA, 1963); Argumento: Elia Kazan, segundo romance seu; Produção: Charles H. Maguire, Elia Kazan; Música: Manos Hatzidakis; Fotografia (p/b): Haskell Wexler; Montagem: Dede Allen; Design de produção: Gene Callahan; Direcção artística: Vassilis Photopoulos; Guarda-roupa: Anna Hill Johnstone; Maquilhagem: Eligio Trani; Som: Jean Bagley, Edward Beyer, Jack Fitzstephens, Le Roy Robbins, Dick Vorisek, Stanley Bixtel; Companhias de produção: Athena Enterprises, Warner Bros.;Intérpretes: Stathis Giallelis (Stavros Topouzoglou), Frank Wolff (Vartan Damadian), Harry Davis (Isaac Topouzoglou), Elena Karam (Vasso Topouzoglou), Estelle  (Avó Topouzoglou), Gregory Rozakis (Hohannes Gardashian), Lou Antonio (Osman), Salem  (Odysseus Topouzoglou), John Marley (Garabet), Joanna Frank (Vartuhi), Paul Mann (Aleko Sinnikoglou), Linda Marsh (Thomna Sinnikoglou), Robert H. Harris, Katharine Balfour, Giorgos Foundas, Tom Holland, Elia Kazan (voz), Dimitris Nikolaidis, Dimos Starenios, etc. Duração: 174 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): inexistente; Edição vídeo em Portugal: Filmes Lusomundo (colecção Argos); Distribuição internacional (DVD): Regia Films (Espanha); Classificação etária: M/ 12 anos. Versão inglesa, com legendas em espanhol. 

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