sexta-feira, 3 de março de 2017

15 DE MARÇO DE 2017: O PADRINHO



O PADRINHO (1972)
Antes de “O Padrinho”, Coppola tinha realizado filmes interessantes, mas sem nada que neles autorizasse supor a existência de um génio. “Demência 13” (1963), “A Noite é Perversa”, “O Vale do Arco-Íris”, “Chove no Meu Coração” (1969) não permitiam antever o que viria depois. Desde logo a trilogia “O Padrinho”, em cinema e televisão, mas igualmente títulos tão importantes como “O Vigilante”, “Apocalypse Now”, “Do Fundo do Coração”, “Os Marginais”, “Juventude Inquieta”, “Cotton Club”, “Peggy Sue Casou-se”, “Jardins de Pedra”, “Tucker - O Homem e o Seu Sonho”, “Drácula de Bram Stoker”, “O Poder da Justiça”, ou “Tetro” (2009), último título seu até hoje que nos entusiasmou.
A partir de “O Padrinho”, Coppola assume-se como um dos grandes cineastas do moderno cinema norte-americano, com uma obra de um fôlego dramático, em simultâneo de um classicismo e de um arrojo formal que surpreendem e fascinam.
Em “The Godfather” não sei que mais enaltecer, se a inteligência e lucidez do argumento, se a magnificência e subtileza da realização, se o espantoso trabalho de actores com que nos deparamos, se a qualidade técnica e artística da fotografia, da direcção artística, do guarda roupa, da música, enfim de todos os aspectos desta magnífica orquestra a funcionar em uníssono para um fim desejado.
Tudo se passa em meados dos anos 40, terminada a II Guerra Mundial. Em Nova Iorque e na zona que rodeia a metrópole, algumas famílias da Mafia disputam o poder e a influência que lhes permitam multiplicar os lucros. Estamos numa época de mudança. Os antigos gangsters dos anos 30 estavam a desaparecer e a dar lugar a novos empórios com novas filosofias de sobrevivência. Uma dessas famílias, talvez a mais poderosa e a mais invejada, era a de Don Corleone (Marlon Brando), que funcionava à moda antiga, que preferia controlar o jogo, as bebidas, as mulheres, a prostituição e o proxenetismo, do que alinhar na droga, que se adivinhava surgir em força. Dom Corleone, contudo, tem um “rigoroso código moral” e não aceita esse negócio de drogas que lhe é proposto, recusando viciar a juventude. Mais tarde outros irão aceitar as regras, desde que as drogas duras sejam vendidas sobretudo “a pretos e latinos”.
Mas é a recusa inicial de Don Corleone que irá lançar os vários gangs de mafiosos uns contra os outros, culminando tudo isto com um massacre desapiedado, no meio do qual desaparece não só Dom Corleone, como familiares, e muitos dos seus principais colaboradores e adversários. Quando a dinastia dos Corleone parece à beira do total colapso, eis que um novo “padrinho” surge no horizonte com processos bem mais “modernos”, muito mais de acordo com o tipo de iniciativas actuais. 0 novo Corleone (Al Pacino) irá então triunfar onde o velho estilo do gangster de Chicago dos anos 30 tinha já naufragado. Curioso, no entanto, notar que o novo “padrinho” surge de início como o descendente que mais longe se encontra de poder prosseguir a obra do pai, sendo, aliás, cuidadosamente afastado de todos os negócios menos claros. Porque ele era a face legal, a honra da família, o brilhante representante de uma aculturação intensa, que estudara, servira no exército, fora condecorado por actos heroicos. Ele era o homem que a família conseguira introduzir dentro do sistema americano, que a própria América homenageara. Parece-nos este um dos aspectos mais curiosos do filme de Coppola ao documentar este confronto entre duas mentalidades, uma que entra em declínio, enquanto outra ascende vertiginosamente ao poder, mostrando igualmente como os seus métodos violentos se mantêm, mas com novas nuances, com matizes diversos nos seus processos de luta pelo poder. 
Neste particular, toda a sequência (montada em paralelo) de um baptizado e de uma chacina é obviamente elucidativa dos novos métodos que iludem a agressividade de outrora. A este respeito, outros se lhe poderão acrescentar, desde a análise de uma situação dominada por um paternalismo ditatorial (a figura de Don Corleone - Marlon Brando justifica as suas acções por uma aparente “rectidão moral” e por uma obediência a preceitos de justiça e regras de moralidade muito próprias, de que facilmente se descobre a falência), até ao desenho de uma época, passando pelo jogo de interesses que grupos clandestinos conseguem sustentar com altas individualidades do poder administrativo e legislativo americanos (senadores, juízes, juristas, polícia, etc.). No interior deste longo painel de uma sociedade viciada pelo crime e pela corrupção, iremos ainda encontrar referências directas a individualidades reconhecíveis, caso do “cantor-actor” que tudo parece indicar tratar-se de Frank Sinatra, nos tempos em que este andava por baixo e terá sido a influência de algum “padrinho” que lhe conseguiu o papel em “Até à Eternidade” que o voltaria a catapultar para a glória, incluindo com a atribuição de um Oscar que algumas más línguas (quem sabe?) afirmam ter sido igualmente conquistado com a interferência da Mafia.
Neste aspecto, o filme de Coppola é terrivelmente eficaz na crítica e no desmontar dos esquemas montados para assegurarem o progresso económico das “famílias” que trocam favores em todos os escalões sociais da sociedade certificando-se que para todos os problemas se encontram “soluções”. “O Padrinho” fala da Mafia nos anos 40, nos EUA. Será que o que então aí se passava já pertence ao passado? Em grande parte, é claro que sim. Os métodos são hoje em dia muito mais higienizados, mas não menos violentos. E as “famílias” diversificaram-se. Hoje não são só os sicilianos, a corrupção instala-se um pouco por todo o lado, e tudo se faz para se esconder os processos nada lícitos de enriquecer. É difícil hoje falar-se de um padrinho, quando eles proliferam a todos os níveis. Só na América? Infelizmente, o que nos dizem os factos é que os padrinhos não têm pátria. Tudo se sabe numa democracia? “O Padrinho” também nos mostra como se cozinham as notícias, com jornalistas comprados que escrevem o que convém a determinada personalidade ou grupo. Sobretudo como destruir socialmente alguém que não nos interessa que tenha boa fama. O caso do capitão da polícia que é pago enquanto serve os interesses, mas de quem depois se descobrem os podres, para arruinar a reputação é exemplar. Veja-se inclusive como esses podres são conservados em banho-maria enquanto a figura dá jeito e cumpre as tarefas para que é paga, bem paga aliás, e como eles saltam para as paragonas dos jornais quando se torna necessário.
Uma obra bem elaborada na origem, pensada, estruturada, rica de implicações e significados, subtil no que tenta fazer passar, é obviamente uma obra que exige no acto de desfrute a mesma atenção e critério, a mesma complexidade de análise, a exploração de caminhos diversos. “O Padrinho” é um manancial de interpretações possíveis. Atente-se na figura de Don Corleone (Marlon Brando). Este chefe da Mafia é um exemplo de ditador político, que baseia o seu poder na célula familiar, mesmo quando não existem laços desse género. Quando assim é, eles toram-se protegidos do “padrinho”, pedem favores e ficam à espera que os mesmos sejam pagos. Tecem-se assim teias de influências secretas a que se lança mão quando necessário. O filme começa, aliás, com uma cena absolutamente notável, com um pedido de favor, na obscuridade da sala privada de Don Corleone, onde este explica as regras de conduta. Subordinação completa ao seu poder, se pretende um favor que será conferido de imediato. Mais tarde, o penitente cumprirá o reverso da medalha, como dono de uma funerária. Mas esta cena é ainda importante para definir o papel da América como terra prometida, paraíso para os italianos que a demandam há séculos. Veja-se como este filme de Coppola anda à volta apenas de italianos, italo-americanos e americanos brancos. Esta é a sociedade que importa para o “padrinho”. É neste círculo que estabelece as regras, que as faz cumprir, que negoceia em paridade, que aceita misturas raciais. O padrinho governa esta sociedade fechada, numa ordem corporativa, dirigida de forma paternalista (O chefe sabe o que é melhor para todos e impõe esse saber). A Mafia poderá estar na base de algumas formas ditatoriais, como o fascismo italiano ou a ditadura corporativa e paternalista de Salazar. 
Esta história que Francis Ford Coppola escreveu de colaboração com Mario Puzo, o autor do romance de onde tudo parte, mostra-se ainda curiosa de um outro ponto de vista. Claro que a visão dos responsáveis por este projecto é crítica. Mas não deixa de existir um certo fascínio por esta sociedade patriarcal, com regras muito definidas e uma defesa intransigente da família. O próprio Coppola dirige este empreendimento como um chefe de família, fazendo participar nele toda a família, desde o pai, irmã, filhos, demais parentes. Olhando para as fotografias de rodagem, o ambiente é igualmente de fraterna criatividade. Não esquecer, portanto, que Coppola é de origem italiana, o que fica bem demonstrado ao longo de toda a sua filmografia. A empatia com os costumes italianos está bem patente nesse fabuloso casamento inicial, uma das sequências absolutamente inesquecíveis deste filme, bem como o baptismo que virá depois. Em ambas as sequências a vida é aclamada ao ar livre, na luminosidade do dia, enquanto os negócios sujos se projectam no interior de gabinetes escusos, sombrios, que facilmente se associam a velórios. Há inclusive uma cena de refeição que mostra como os negócios devem ser conduzidos longe da esfera familiar, longe das mulheres e das crianças. À mesa não se fala de negócios, é uma norma que urge preservar. 
“O Padrinho” mostra como os traidores são tratados, como os corruptos têm a sorte que merecem, como os leais são favorecidos, e nunca se mostra o reverso da medalha, o que está por detrás desta família organizada em função do crime: não há prostitutas na rua ou em bordeis, não há vítimas de bebida ou de jogo, nem sequer se vê a droga a progredir no tecido social. O que assistimos é a uma visão interior, íntima, familiar em torno de um desses imperadores da Mafia na América de 40. Na já aludida conversa inicial, o dono de uma funerária pede justiça para a filha que “perdeu a honra” nos braços de um jovem. Ele pretende justiça. Don Vito pergunta-lhe porque só veio agora. “Fui à polícia, como um bom americano”. “Porque foi à polícia e não veio ter comigo logo?”, pergunta o padrinho. A confirmação de que existem duas sociedades, dois poderes, duas justiças justapostas.
Voltando à cena do casamento inicial, veja-se a mestria de Coppola a desenhar figuras e situações. Existem várias personagens essenciais ao desenrolar da intriga futura. Em meia dúzia de planos elas são descritas nos seus traços fundamentais. De Don Vito Corteone até ao mais insignificante secundário que ensaia no exterior o pequeno diálogo que irá manter com o padrinho no interior. Esta largueza de desenho, esta minucia de caracterização são constantes ao longo de toda a obra. Partindo do argumento, esmera-se na realização, prolonga-se nos diferentes sectores técnicos, da direcção artística, a fotografia, à música (que Coppola divide pelo felliniano Nino Rota e pelo próprio pai, Carmine Coppola, que aparece no filme a tocar piano), até culminar no fabuloso elenco, magistralmente dirigido. Marlon Brandon é genial como (quase) sempre, muito embora a caracterização me continue a parecer algo excessiva, passando por Al Pacino, James Caan, Robert Duvall, Sterling Hayde, John Cazale, Diane Keaton, Richard Conte até aos actores menos conhecidos, mas todos eles brilhantes, Al Lettieri, Abe Vigoda, Talia Shire, Gianni Russo, Rudy Bond, Al Martino, Richard S. Castellano, John Marley, entre tantos outros. 


O PADRINHO
Título original: The Godfather

Realização: Francis Ford Coppola (EUA, 1972); Argumento: Francis Ford Coppola, Mario Puzo, Segundo romance de Mario Puzo ("The Godfather"); Produção: Gray Frederickson, Albert S. Ruddy, Robert Evans; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Gordon Willis; Operador de câmara: Michael Chapman; Montagem: William Reynolds, Peter Zinner; Casting: Louis DiGiaimg, Andrea Eastman, Fred Roos, Riccardo Bertoni; Design de produção: Dean Tavoularis; Direcção artística: Warren Clymer; Decoração: Philip Smith; Guarda-roupa: Anna Hill Johnstone, George Newman, Marilyn Putnam, Joan Joseff; Maquilhagem: Philip Leto, Phil Rhodes, Dick Smith; Direcção de Produção: Fred C. Caruso, Valerio De Paolis,Ned Kopp; Assistentes de realização: Tony Brandt, Fred T. Gallo, Stephen F. Kesten, Steven P. Skloot; Departamento de arte: William Canfield, Robert Hart, Robert Scaife; Som: Charles Grenzbach, Christopher Newman, Richard Portman; Efeitos especiais: Sass Bedig, A.D. Flowers, Joe Lombardi, Paul J. Lombardi; Efeitos visuais (restauro, 2007): Kevin Chaja, Padraic Culham, Daphne Dentz, Karina Desin, Bill Roper, etc. Companhias de produção: Paramount Pictures, Alfran Productions; Intérpretes: Marlon Brando (Don Vito Corleone), Al Pacino (Michael Corleone), James Caan (Sonny Corleone), Richard S. Castellano (Clemenza), Robert Duvall (Tom Hagen), Sterling Hayde (Capt. McCluskey), John Marley (Jack Woltz), Richard Conte (Barzini), Al Lettieri (Sollozzo), Diane Keaton (Kay Adams), Abe Vigoda (Tessio), Talia Shire (Connie), Gianni Russo (Carlo), John Cazale (Fredo), Rudy Bond (Cuneo), Al Martino (Johnny Fontane), Morgana King (Mama Corleone), Lenny Montana (Luca Brasi), John Martino, Salvatore Corsitto, Richard Bright, Alex Rocco, Tony Giorgio, Vito Scotti, Tere Livrano, Victor Rendina, Jeannie Linero, Julie Gregg, Ardell Sheridan, Simonetta Stefanelli, Angelo Infanti, Corrado Gaipa, Franco Citti, Saro Urzì, Chris Anastasio, Norm Bacchiocchi, Max Brandt, Tybee Brascia, Carmine Coppola (pianist), Gian-Carlo Coppola (no baptizado), Italia Coppola (Extra), Roman Coppola (rapaz no passeio a ver passar o funeral), Sofia Coppola (Michael Francis Rizzi), Don Costello (Don Victor Stracci), Robert Dahdah, Richard Fass, Gray Frederickson, Ron Gilbert, Anthony Gounaris, Joe Lo Grippo, Sonny Grosso, Louis Guss, Merril E. Joels, Randy Jurgensen, Tony King, Peter Lemongello, Tony Lip, Frank Macetta, Lou Martini Jr., Raymond Martino, Joseph Medaglia, Carol Morley, Rick Petrucelli, Joe Petrullo, Burt Richards, Sal Richards, Tom Rosqui, Nino Ruggeri, Frank Sivero, Filomena Spagnuolo, Joe Spinell, Gabriele Torrei, Nick Vallelonga, Ed Vantura, Ron Veto, Matthew Vlahakis, Conrad Yama, etc. Duração: 175 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Filmes / Paramount Pictures; Classificação etária: M/ 17 anos (posteriormente: M/ 18 anos); Data de estreia em Portugal: 24 de Outubro de 1972. 

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