sexta-feira, 17 de março de 2017

22 DE MARÇO DE 2017: O MUNDO A SEUS PÉS


O MUNDO A SEUS PÉS


O início de “Citizen Kane” é admirável: grades de um portão. Um monograma: K. Um letreiro: interdita a passagem. A bruma e ao longe um castelo: Xanadu. De Kublan Khan a C. F. Kane. Uma janela vista do exterior, uma pequena luz que se mantém no mesmo ponto do écran, apesar dos planos que se sucedem, um corpo em silhueta, uma vela que se apaga. A mesma janela, agora do interior. A mesma silhueta. Nas mãos do “cidadão” uma bola de vidro com uma paisagem de neve. A bola de vidro rola dos dedos cansados para o chão, onde se parte. Dos lábios de Kane nasce uma palavra “Rosebud”. Um corte súbito na banda sonora e uma mancha apoteótica indicam o início da projecção de um jornal de actualidades. Irá principiar aqui a viagem em redor de um cidadão.
Quem era Charles Foster Kane? As “actualidades” mostram a diversidade de opiniões que os contemporâneos guardavam da sua memória: "É um comunista!”; “E um fascista!” As imagens das actividades públicas de Kane não permitem conclusões satisfatórias. Estamos ainda na epiderme de um homem e todas as contradições de uma sociedade como a americana são notoriamente visíveis. Kane foi, sucessivamente, e em simultâneo, uma infinidade de coisas, preenchendo com a sua vida os conceitos mais variados. O director do jornal de actualidades não se dá por satisfeito com a sucessão das imagens e quer ir mais além. Saber quem foi realmente Kane. Saber o que queria dizer “Rosebud”, sua última palavra. Para tentar descobrir isso, envia repórteres a interrogar os amigos e conhecidos daquele que em Xanadu morrera só.
Um dos jornalistas vai folhear memórias numa biblioteca, o que lhe permite penetrar na infância de Kane. O inquérito prossegue junto de Bernstein, que relembra o dia em que Kane entrou na redacção do “Inquire” e o casamento com a sobrinha do presidente dos EUA. Mais tarde, Leland evoca a crise política de Kane, descoberto pelo candidato rival numa aventura amorosa com uma cantora de ópera de décima ordem. Uma aventura que lhe custará o lugar para governador e o seu casamento.


De novo só, Kane casa-se com Susan, a quem obriga a ser cantora de ópera. É esta quem descreverá esses tempos, a sua tentativa de suicídio e, finalmente a separação. Kane só, em Xanadu, última parcela de um “puzzle”, será reconstruído pelo mordomo do palácio. Rosebud? Será a bola de vidro que lhe rodou das mãos no momento da morte?, pergunta-se o mordomo. Mas, entre os despojos de Xanadu, um trenó de criança é lançado às chamas. A madeira, vorazmente envolvida pelo fogo, deixa ver uma palavra: será essa a chave do enigma? O mundo da infância, perdido para sempre aos oito anos, será para Kane o centro do puzzle? O centro de um puzzle que o jornalista nunca descobrirá. Um segredo que Welles nos revela. Será esse um segredo pessoal?
Vemos assim como todo o filme se desenrola com uma investigação, uma peregrinação pelos labirintos íntimos de um homem. Dele temos, primeiramente, as imagens possíveis de qualquer jornal de actualidades. O que fez, quando fez, o que dele dizem, apressadamente, companheiros e adversários. Depois, lentamente, o círculo em redor de Kane vai-se fechando. São novos depoimentos, são novas reconstituições, novos “flashs backs” que penetram a memória e reconstituem o passado. Kane vai progressivamente ganhando uma presença diferente. A silhueta que dele víramos no início vai-se preenchendo de formas, “nuances”, sombras e, finalmente, o retrato, ainda que contraditório, ainda que ambíguo, ainda que polivalente, vai-se construindo. Charles Foster Kane é tão simplesmente um americano. Aliás esta ideia de “puzzle”, de reconstituição de imagens ou de tempo, está presente em “Citizen Kane” a vários níveis. São os monstruosos “puzzles” de Susan (que nunca chegamos a ver terminados), é esse enorme Xanadu, repositório de vários estilos, argamassa de tons diversos, «museu ideal» de Kane, é essa ânsia de aprisionar as próprias pessoas. Mesmo ao nível de sentimentos, Kane tenta organizar em redor de si um outro enorme “puzzle” de pessoas que o amem, o respeitem, o venerem. “Nada dando em troca”, como acusa Susan (que, no entanto, não pode deixar de lamentar o seu desaparecimento).
Orson Welles, com Kane, abre ao cinema os caminhos da modernidade. Com Orson Welles, com “Citizen Kane”, alguma da liberdade é restituída ao espectador. De que maneira? Pois, em primeiro lugar, pela forma como Welles faculta elementos de um “puzzle”, nunca impondo uma informação unívoca à figura. Isto é, para cada espectador Kane será, como para qualquer concidadão, uma figura a interpretar, a decifrar por si mesmo. O próprio Welles não saberá talvez quem é Kane, qual a posição a assumir frente a esta personagem. Na verdade, toda a filmografia de Welles nos mostra o extraordinário fascínio que certas figuras excessivas e demenciais exercem sobre o cineasta. É evidente que Welles se sente identificado com Kane; é óbvio que existem muitas afinidades entre as duas personagens. Mas, Orson Welles, lúcido e avisado, sabe os limites, conhece as falhas, oferece os dados que permitem criticar, ou distanciar, as figuras, reduzindo-as às suas verdadeiras dimensões.


Para conseguir manter esta liberdade de opção, Welles oscila entre diversos estilos, desde a aparente neutralidade narrativa, servindo-se para isso de actualidades (forjadas, evidentemente...), até uma construção barroca de planos, perfeitamente revolucionária na época. Na verdade, em “Citizen Kane”, à medida que se progride na complexidade e interiorização da figura, evolui-se também para uma maior complexidade narrativa, conjugando-se planos rapidíssimos, com planos-sequência, onde se nota um aturado trabalho de “mise en scène”, ao longo de toda a profundidade de campo, conduzido por hábeis movimentos de câmara.
O realizador empenha-se, não raro, em sobrecarregar os planos com uma carga emocional determinada não só através do enquadramento, da iluminação, da utilização de lentes grandes angulares (com o consequente aumento de profundidade de campo, que lhe irá permitir uma “mise en scène” em profundidade), como através do próprio traçado dos cenários (onde são visíveis influências do expressionismo) e no tratamento da banda sonora, invulgarmente trabalhada e cuidada, de forma a produzir certas clivagens no ritmo geral da narrativa (lembramo-nos, por exemplo, do grito de uma ave, presença perfeitamente gratuita na aparência, e que, todavia, irá provocar uma cisão no desenvolvimento dramático do filme).
Se o cinema americano tinha sido, até 1942, Griffith e John Ford, os artífices do classicismo, nada será como antes depois de “Citizen Kane”, que abre o cinema aos terrenos da modernidade. Um filme memorável, portanto, para o qual não se solicita a atenção do público, mas sim o seu amor. Orson Welles bem o merece. Ele continua a ser o “mestre”.

O MUNDO A SEUS PÉS
Título original: Citizen Kane

Realização: Orson Welles (EUA, 1941-1942); Argumento: Herman J. Mankiewicz e Orson Welles (John Houseman e Joseph Cotten, não creditados); Montagem: Robert Wise e Mark Robson; Fotografia (preto e branco): Gregg Toland; Operador: Bert Shipman; Música: Bernard Herrmann; Cenários: Van Nest Polglase e Perry Ferguson; Decorador: Darrell Silvera; Assistente de realização: Richard Wilson; Som: Bailey Fesler, James G. Stewart; Efeitos especiais: Vernon L. Walker; Guarda-roupa: Edward Stevenson; Produtor: Orson Welles; Produtor associado: Richard Barr; Produtor executivo: George J. Schaefer; Produção: A Mercury Production by Orson Welles / RKO: Radio Pictures; Intérpretes: Orson Welles (Charles Foster Kane); Joseph Cotten (Jedediah Leland); Dorothy Comingore (Susan Alexander); Everett Sloane (Mr. Bernstein); Ray Collins (Boss J.W. "Big Jim" Gettys); George Coulouris (Walter Parks Thatcher); Agnes Moorehead (Mary Kane); Paul Stewart (Raymond), Ruth Warrick (Emily Norton Kane); Erskine Sanford (Herbert Carter); William Alland (Jerry Thompson); Fortunio Bonanova (Matisti); Gus Schilling (Mordomo do "Rancho"); Philip Van Zandt (Mr. Rawlston); Georgia Backus (Miss Anderson); Harry Shannon (Jim Kane); Sonny Bupp (Kane III); Buddy Swan (Kane aos 8 anos); Alan Ladd (Repórter); Arthur O'Connell (Repórter), Kathryn Trosper (Repórter), Richard Baer (Hillman), Charles Bennett (actor), Joan Blair (Georgia), Edmund Cobb (Repórter do Inquirer), Eddie Coke (Repórter), Gino Corrado (Gino, empregado), Herbert Corthell (editor do Inquiquer), Thomas A. Curran (Teddy Roosevelt), Louise Currie (Repórter), Robert Dudley (Fotógrafo), Al Eben (Mike), Edith Evanson (Enfermeira), Jean Forward (Cantora de Opera), Arthur Kay (Maestro), Milton Kibbee (Repórter), Alan Ladd (Repórter de cachimbo), Ellen Lowe (Miss Townsend), Herman J. Mankiewicz (Jornaleiro), Irving Mitchell (Dr. Corey), Frances E. Neal (Ethel), Thomas Pogue, Guy Repp (Repórter), Benny Rubin (Smather), Walter Sande (Repórter), Gregg Toland (Entrevistador), Patrick Whitney (Repórter), Tudor Williams (director de coros), Richard Wilson (Repórter), etc. Duração: 119 minutos; Rodagem: Hollywood (entre 30 de Julho e 23 de Outubro de 1940); Estreia: 9 de Abril de 1941 (New York Palace, Nova Iorque); Distribuição internacional; RKO Radio Pictures; Distribuição em Portugal (cópia nova): Filmes Lusomundo; Edição vídeo: Costa do Castelo; Classificação: M/ 12 anos.

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