O MUNDO A SEUS PÉS
O início
de “Citizen Kane” é admirável: grades de um portão. Um monograma: K. Um
letreiro: interdita a passagem. A bruma e ao longe um castelo: Xanadu. De
Kublan Khan a C. F. Kane. Uma janela vista do exterior, uma pequena luz que se
mantém no mesmo ponto do écran, apesar dos planos que se sucedem, um corpo em
silhueta, uma vela que se apaga. A mesma janela, agora do interior. A mesma
silhueta. Nas mãos do “cidadão” uma bola de vidro com uma paisagem de neve. A
bola de vidro rola dos dedos cansados para o chão, onde se parte. Dos lábios de
Kane nasce uma palavra “Rosebud”. Um corte súbito na banda sonora e uma mancha
apoteótica indicam o início da projecção de um jornal de actualidades. Irá
principiar aqui a viagem em redor de um cidadão.
Quem era
Charles Foster Kane? As “actualidades” mostram a diversidade de opiniões que os
contemporâneos guardavam da sua memória: "É um comunista!”; “E um
fascista!” As imagens das actividades públicas de Kane não permitem conclusões
satisfatórias. Estamos ainda na epiderme de um homem e todas as contradições de
uma sociedade como a americana são notoriamente visíveis. Kane foi,
sucessivamente, e em simultâneo, uma infinidade de coisas, preenchendo com a
sua vida os conceitos mais variados. O director do jornal de actualidades não
se dá por satisfeito com a sucessão das imagens e quer ir mais além. Saber quem
foi realmente Kane. Saber o que queria dizer “Rosebud”, sua última palavra.
Para tentar descobrir isso, envia repórteres a interrogar os amigos e
conhecidos daquele que em Xanadu morrera só.
Um dos
jornalistas vai folhear memórias numa biblioteca, o que lhe permite penetrar na
infância de Kane. O inquérito prossegue junto de Bernstein, que relembra o dia
em que Kane entrou na redacção do “Inquire” e o casamento com a sobrinha do
presidente dos EUA. Mais tarde, Leland evoca a crise política de Kane,
descoberto pelo candidato rival numa aventura amorosa com uma cantora de ópera
de décima ordem. Uma aventura que lhe custará o lugar para governador e o seu
casamento.
De novo
só, Kane casa-se com Susan, a quem obriga a ser cantora de ópera. É esta quem
descreverá esses tempos, a sua tentativa de suicídio e, finalmente a separação.
Kane só, em Xanadu, última parcela de um “puzzle”, será reconstruído pelo
mordomo do palácio. Rosebud? Será a bola de vidro que lhe rodou das mãos no
momento da morte?, pergunta-se o mordomo. Mas, entre os despojos de Xanadu, um
trenó de criança é lançado às chamas. A madeira, vorazmente envolvida pelo
fogo, deixa ver uma palavra: será essa a chave do enigma? O mundo da infância,
perdido para sempre aos oito anos, será para Kane o centro do puzzle? O centro
de um puzzle que o jornalista nunca descobrirá. Um segredo que Welles nos
revela. Será esse um segredo pessoal?
Vemos
assim como todo o filme se desenrola com uma investigação, uma peregrinação
pelos labirintos íntimos de um homem. Dele temos, primeiramente, as imagens
possíveis de qualquer jornal de actualidades. O que fez, quando fez, o que dele
dizem, apressadamente, companheiros e adversários. Depois, lentamente, o
círculo em redor de Kane vai-se fechando. São novos depoimentos, são novas
reconstituições, novos “flashs backs” que penetram a memória e reconstituem o
passado. Kane vai progressivamente ganhando uma presença diferente. A silhueta
que dele víramos no início vai-se preenchendo de formas, “nuances”, sombras e,
finalmente, o retrato, ainda que contraditório, ainda que ambíguo, ainda que
polivalente, vai-se construindo. Charles Foster Kane é tão simplesmente um
americano. Aliás esta ideia de “puzzle”, de reconstituição de imagens ou de
tempo, está presente em “Citizen Kane” a vários níveis. São os monstruosos
“puzzles” de Susan (que nunca chegamos a ver terminados), é esse enorme Xanadu,
repositório de vários estilos, argamassa de tons diversos, «museu ideal» de
Kane, é essa ânsia de aprisionar as próprias pessoas. Mesmo ao nível de
sentimentos, Kane tenta organizar em redor de si um outro enorme “puzzle” de
pessoas que o amem, o respeitem, o venerem. “Nada dando em troca”, como acusa
Susan (que, no entanto, não pode deixar de lamentar o seu desaparecimento).
Orson Welles, com Kane, abre
ao cinema os caminhos da modernidade. Com Orson Welles, com “Citizen Kane”,
alguma da liberdade é restituída ao espectador. De que maneira? Pois, em
primeiro lugar, pela forma como Welles faculta elementos de um “puzzle”, nunca
impondo uma informação unívoca à figura. Isto é, para cada espectador Kane
será, como para qualquer concidadão, uma figura a interpretar, a decifrar por
si mesmo. O próprio Welles não saberá talvez quem é Kane, qual a posição a
assumir frente a esta personagem. Na verdade, toda a filmografia de Welles nos
mostra o extraordinário fascínio que certas figuras excessivas e demenciais
exercem sobre o cineasta. É evidente que Welles se sente identificado com Kane;
é óbvio que existem muitas afinidades entre as duas personagens. Mas, Orson
Welles, lúcido e avisado, sabe os limites, conhece as falhas, oferece os dados
que permitem criticar, ou distanciar, as figuras, reduzindo-as às suas
verdadeiras dimensões.
Para
conseguir manter esta liberdade de opção, Welles oscila entre diversos estilos,
desde a aparente neutralidade narrativa, servindo-se para isso de actualidades
(forjadas, evidentemente...), até uma construção barroca de planos,
perfeitamente revolucionária na época. Na verdade, em “Citizen Kane”, à medida
que se progride na complexidade e interiorização da figura, evolui-se também
para uma maior complexidade narrativa, conjugando-se planos rapidíssimos, com
planos-sequência, onde se nota um aturado trabalho de “mise en scène”, ao longo
de toda a profundidade de campo, conduzido por hábeis movimentos de câmara.
O realizador empenha-se, não
raro, em sobrecarregar os planos com uma carga emocional determinada não só
através do enquadramento, da iluminação, da utilização de lentes grandes
angulares (com o consequente aumento de profundidade de campo, que lhe irá
permitir uma “mise en scène” em profundidade), como através do próprio traçado
dos cenários (onde são visíveis influências do expressionismo) e no tratamento
da banda sonora, invulgarmente trabalhada e cuidada, de forma a produzir certas
clivagens no ritmo geral da narrativa (lembramo-nos, por exemplo, do grito de
uma ave, presença perfeitamente gratuita na aparência, e que, todavia, irá
provocar uma cisão no desenvolvimento dramático do filme).
Se o
cinema americano tinha sido, até 1942, Griffith e John Ford, os artífices do
classicismo, nada será como antes depois de “Citizen Kane”, que abre o cinema
aos terrenos da modernidade. Um filme memorável, portanto, para o qual não se
solicita a atenção do público, mas sim o seu amor. Orson Welles bem o merece.
Ele continua a ser o “mestre”.
O MUNDO A SEUS PÉS
Título original: Citizen Kane
Realização: Orson Welles (EUA, 1941-1942); Argumento: Herman J.
Mankiewicz e Orson Welles (John Houseman e Joseph Cotten, não creditados);
Montagem: Robert Wise e Mark Robson; Fotografia (preto e branco): Gregg Toland;
Operador: Bert Shipman; Música: Bernard Herrmann; Cenários: Van Nest Polglase e
Perry Ferguson; Decorador: Darrell Silvera; Assistente de realização: Richard
Wilson; Som: Bailey Fesler, James G. Stewart; Efeitos especiais: Vernon L.
Walker; Guarda-roupa: Edward Stevenson; Produtor: Orson Welles; Produtor
associado: Richard Barr; Produtor executivo: George J. Schaefer; Produção: A
Mercury Production by Orson Welles / RKO: Radio Pictures; Intérpretes: Orson Welles (Charles Foster Kane); Joseph Cotten
(Jedediah Leland); Dorothy Comingore (Susan Alexander); Everett Sloane (Mr.
Bernstein); Ray Collins (Boss J.W. "Big Jim" Gettys); George
Coulouris (Walter Parks Thatcher); Agnes Moorehead (Mary Kane); Paul Stewart
(Raymond), Ruth Warrick (Emily Norton Kane); Erskine Sanford (Herbert Carter);
William Alland (Jerry Thompson); Fortunio Bonanova (Matisti); Gus Schilling
(Mordomo do "Rancho"); Philip Van Zandt (Mr. Rawlston); Georgia
Backus (Miss Anderson); Harry Shannon (Jim Kane); Sonny Bupp (Kane III); Buddy
Swan (Kane aos 8 anos); Alan Ladd (Repórter); Arthur O'Connell (Repórter),
Kathryn Trosper (Repórter), Richard Baer (Hillman), Charles Bennett (actor),
Joan Blair (Georgia), Edmund Cobb (Repórter do Inquirer), Eddie Coke
(Repórter), Gino Corrado (Gino, empregado), Herbert Corthell (editor do
Inquiquer), Thomas A. Curran (Teddy Roosevelt), Louise Currie (Repórter),
Robert Dudley (Fotógrafo), Al Eben (Mike), Edith Evanson (Enfermeira), Jean
Forward (Cantora de Opera), Arthur Kay (Maestro), Milton Kibbee (Repórter),
Alan Ladd (Repórter de cachimbo), Ellen Lowe (Miss Townsend), Herman J.
Mankiewicz (Jornaleiro), Irving Mitchell (Dr. Corey), Frances E. Neal (Ethel),
Thomas Pogue, Guy Repp (Repórter), Benny Rubin (Smather), Walter Sande
(Repórter), Gregg Toland (Entrevistador), Patrick Whitney (Repórter), Tudor
Williams (director de coros), Richard Wilson (Repórter), etc. Duração: 119 minutos; Rodagem: Hollywood (entre
30 de Julho e 23 de Outubro de 1940); Estreia: 9 de Abril de 1941 (New York
Palace, Nova Iorque); Distribuição internacional; RKO Radio Pictures;
Distribuição em Portugal (cópia nova): Filmes Lusomundo; Edição vídeo: Costa do
Castelo; Classificação: M/ 12 anos.
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