OS
HOMENS DO PRESIDENTE (1976)
1. Sábado, 17 de Junho de 1972, 2.30 da
madrugada, cinco homens penetram no Watergate Office Building, em Washington, e
entram na sede do Comité Nacional do Partido Democrático, que se encontra ali
instalado. Trata-se de um assalto. Com fins que se suspeita inconfessáveis,
quando os assaltantes são surpreendidos pela polícia. Os cinco homens
fotografam documentação e colocam microfones que iriam permitir escutar as
conversas ali mantidas. Não são gatunos vulgares. Vestem elegantemente e
dispõem de máquinas e aparelhos extremamente sofisticados. Presos, irão ser
julgados. Como normalmente, os jornais delegam para estes casos de aparente
pouca importância, os “fait divers” do dia-a-dia de uma grande metrópole, os
seus repórteres estagiários. É aí que se “roda” o ofício e adquire experiência.
“The Washington Post”, por exemplo, envia para “cobrir” o julgamento Bob
Woodward, um jovem com nove meses de casa.
É Bob Woodward (Robert Redford) quem se
senta na sala de audiência, pronto a redigir mais uma notícia de poucas linhas
e significado meramente “anedótico”. Mas a audiência principia de forma
estranha: os réus, que não tinham tido oportunidade de solicitar advogados e
para os quais haviam sido indicados “oficiosos”, encontram na sala advogados de
certa influência, que ali dizem estar como “observadores”. Quando o juÍz
principia o interrogatório, um dos presos afirma ser de profissão
“anticomunista”. Confessa-se depois “técnico de seguros” e, na resposta
seguinte, denuncia todo o jogo, confessando ter trabalhado recentemente na
Agência Central de Informações (vulgo CIA).
Woodward pressente neste momento que os
porto-riquenhos e cubanos refugiados que se encontram na barra do tribunal não
são só eles próprios, mas algo que os ultrapassa. Descobre, sobretudo, que é
necessário investigar o que está por detrás daquele grupo de homens apanhados a
violar um “escritório”. Regressado a “The Washington Post”, colocará estas e
outras dúvidas aos seus chefes de redacção. Junta-se ao seu trabalho um outro
redactor de “The Post”, Carl Bernstein (Dustin Hofman), homem de maior
experiência, ainda que igualmente bastante jovem, pessoa tida como excelente
“pescador” de informações. Este reforço surge a Woodward simultaneamente
antipático e bem-vindo.
Acabará por aceitá-lo e partem ambos à
conquista de uma cidade. No que viria a ser um dos mais importantes inquéritos
jornalísticos de toda a história da América. “Uma bela prova de jornalismo à
americana”, como um dos chefes de redacção de “The Post”, o chamará.
2. “All the President's Men” é o filme
que Alan J. Pakula dirigiu, co-produzido por Robert Redford e Walter Coblenz,
partindo do livro que entretanto Carl Bernstein e Bob Woodward editaram. O
filme acompanha o percurso dos dois jornalistas que lançam o repto a uma nação
e aceitam investigar as suas instituições e interrogar as pessoas até
descobrirem o que quer integralmente dizer “Watergate”. O cinema americano tem
uma honrosa tradição neste tipo de cinema, estilo “detective particular”, sendo
muitas vezes esse “detective” um jornalista. Que o ateste Bogart em “A Última
Ameaça”, por exemplo.
Desses cinco homens inicialmente
apanhados, que mais não eram do que peões de um xadrez muito complexo, Woodward
e Bernstein vão lentamente localizando mais nomes, referências, dados,
elementos a reunir, a ligar e interligar, num majestoso puzzle que acaba por
atingir os homens de confiança do presidente, e finalmente, o próprio Nixon,
que se vê constrangido à demissão pública. É deste modo que se descobre que o
aparelho reeleitor de Richard Nixon há já muito tempo usava e abusava das
técnicas mais sujas para vencer o adversário político, neste caso o Partido
Democrático, aqui encabeçado por Mac Govern. Todos os processos eram julgados
próprios, da calúnia à violação de residências, das escutas telefónicas à
sabotagem de reuniões privadas.
A América assiste, estupefacta. Começa
por não acreditar, mas tem de aceitar a força dos argumentos apresentados pelos
dois jovens jornalistas. Argumentos irrefutáveis que provam que o banditismo
pode ascender também à presidência.
3. “Os Homens do Presidente” é ainda (ou
talvez sobretudo?) exemplar como demonstração de uma metodologia da
investigação jornalística e da ética profissional que um homem como Ben Bradlee
(Jason Robards) personifica. Enquanto os repórteres esmiúçam nomes e endereços,
as acusações só saem para a rua, impressas em letra de forma, quando as
informações se encontram devidamente comprovadas, incontroversas. Demonstração
de algo essencial em jornalismo, que será a base da própria profissão: não
acusar ninguém sem um máximo de garantia da veracidade dos factos imputados.
No caso presente, todo o deslindar de
“Watergate” poderá ter sido comprometido por uma informação saída a destempo.
Não se trata aqui de jornalismo de sensação, emporcalhado pela ignomínia dos
processos, mas de jornalismo escorreito, honestamente frontal e combativo, que
sabe onde deve deter-se, obrigando-se à pausa reflexiva. “All the President's
Men” é, neste aspecto, exemplar.
À fogosidade generosa e impulsiva de
Bernstein e Woodward corresponde a serena determinação de Bradlee. Do trabalho
conjunto surge este verdadeiro hino a uma imprensa livre e crítica, objectiva e
criadora.
Sinfonia a preto e branco (ainda que
rodada a cores), “All the President’s Men” alterna, por meio de uma montagem
invulgar, no ritmo do corte, na segurança da elipse e do raccord, dois tempos
perfeitamente definidos. De um lado, a luz berrante da redacção de “The
Washington Post”, do outro, os meandros sombrios que envolvem “os homens do
presidente”. A investigação é esse rasgar das trevas, esse progressivo iluminar
de ambientes, esse trazer à luz de informações. O filme é a contínua revelação.
O desvendar. O desobstruir. O que fica desde logo assinalado na sequência
inicial, quando um edifício em completa escuridão é percorrido por cinco
indivíduos, enquanto a luz vai avançando pelas salas, conquistando as trevas,
rasgando a escuridão, à medida que a polícia penetra nas salas.
Por vezes é das trevas que nasce a luz,
como nas cenas em que Woodward se encontra com “Garganta Funda”, seu informador
secreto, elemento preponderante ao longo da investigação. Ele é o emissário da
noite que aceita conferenciar com a luz. Luz que vai lentamente progredindo ao
longo de garagens e ruas desertas e sombrias, de elevadores e casas sinistras,
de interiores de carros e de asfaltos nocturnos.
6. De uma sobriedade de escrita que
poderá julgar-se “facilidade” de escrita, mas que representa, muito pelo
contrário, uma opção estética deliberada e conscientemente assumida, “All the
President's Men” é um trabalho minucioso de reconstituição de ambientes, de
figuras, de dados, quase podendo falar-se de um “ultra-realismo” encenado
rigorosamente e que, no final, se balanceia ao ritmo e segundo o suspense de um
“policial” ou de um “filme negro”. Que também é. A cuja tradição vai buscar
fôlego e dinâmica própria. Porque se segue “Os Homens do Presidente” com a
inquietação e a perplexidade de um “policial”, assim como se interroga a
realidade com a lucidez e a perspicácia de quem acompanha um ensaio político.
O Poder, a Política. A corrupção.
Derrotados pelas armas que são as teclas de uma máquina de escrever. Que
explodem no écran com o impacto terrível de uma detonação mortal. “Os Homens do
Presidente” abrem e fecham com a pedrada seca de um telex que grita a todo o
mundo a vitória da justiça e da força dos seus argumentos. Como o recorda
Bradlee: “É bom que se esqueça o mito que a Imprensa cria à volta da Casa
Branca. Eles não são tão espertos como querem fazer crer”. E mais adiante:
“Porque o que está em causa neste caso é o primeiro aditamento à Constituição,
a liberdade de Imprensa, mesmo o futuro do país”.
A vitória dos dois jornalistas e de “The
Washington Post”, longe de ser um “final feliz” e tranquilizante para o
espectador, é simultaneamente um alerta sobre a corrupção que alastra e a
afirmação indesmentível da força da razão. Quando da razão se faz força, e por
ela se luta. Exemplar ainda e encorajante.
7. Difícil se torna, a finalizar,
sublinhar a qualidade vibrante da montagem, a eficiência simbólica da
fotografia, o rigor da reconstituição. Dos intérpretes, falar da segurança de
Redford (produtor do filme e um dos principais instigadores de todo o
desenrolar desta reportagem explosiva) ou do talento nervoso de Dustin Hofman
poderá ser desnecessário. Mas importará não esquecer o brilhantismo de todos os
secundários. Jason Robards e Jack Warden à cabeça. A toda uma equipa que Alan
J. Pakula soube dirigir com maestria de um «clássico» e o arrojo de um jovem,
se deve este belo exercício de estilo e de moral.
OS
HOMENS DO PRESIDENTE
Título
original: All the President's Men
Realização: Alan J. Pakula (EUA, 1976); Argumento: William Goldman, Segundo obra de
Carl Bernstein e Bob Woodward; Produção: Jon Boorstin, Michael Britton, Walter
Coblenz; Música: David Shire; Fotografia (cor): Gordon Willis; Montagem: Robert
L. Wolfe; Casting: Alan Shayne; Guarda-roupa: Bernie Pollack; Design de
produção: George Jenkins; Decoração: George Gaines; Maquilhagem: Fern Buchner,
Don L. Cash, Romaine Greene, Lynda Gurasich, Gary Liddiard; Direcção de
Produção: E. Darrell Hallenbeck; Assistentes de realização: Bill Green, Kim
Kurumada, Art Levinson, Charles Ziarko; Departamento de arte: Mike Higelmire, Roger Irvin, Robert Krume,
Alan Levine, Bill MacSems, George Szeptycki; Som: Clint Althouse, Milton C.
Burrow, Les Fresholtz, Chris McLaughlin, James E. Webb; Efeitos especiais:
Henry Millar; Companhias de produção: Warner Bros., Wildwood Enterprises; Intérpretes: Dustin Hoffman (Carl
Bernstein), Robert Redford (Bob Woodward), Jack Warden (Harry Rosenfeld),
Martin Balsam (Howard Simons), Hal Holbrook (Deep Throat), Jason Robards (Ben
Bradlee), Jane Alexander (guarda-livros), Meredith Baxter (Debbie Sloan), Ned
Beatty (Dardis), Stephen Collins (Hugh Sloan), Penny Fuller (Sally Aiken), John
McMartin, Robert Walden, Frank Wills, F. Murray Abraham, David Arkin, Henry
Calvert, Dominic Chianese, Bryan Clark, Nicolas Coster, Lindsay Crouse, Valerie
Curtin, Gene Dynarski, Nate Esformes, Ron Hale, Richard Herd, Polly Holliday,
James Karen, Paul Lambert, Frank Latimore, Gene Lindsey, Anthony Mannino, Allyn
Ann McLerie, James Murtaugh, John O'Leary, Jess Osuna, Neva Patterson, George
Pentecost, Penny Peyser, Joshua Shelley, Sloane Shelton, Lelan Smith, Jaye
Stewart, Ralph Williams, etc. Duração: 138 minutos; Distribuição em Portugal: Warner;
Classificação etária: M/ 12 anos.