domingo, 16 de abril de 2017

19 DE ABRIL: NA SOMBRA E NO SILÊNCIO


NA SOMBRA E NO SILÊNCIO (1963)

“Na Sombra e no Silêncio” (To Kill a Mockingbird), de Robert Mulligan (1963), uma produção de Alan J. Pakula, baseada no romance de Harper Lee, foi considerado o melhor filme de sempre sobre temas de tribunais, numa classificação organizada há uns anos pelo American Film Institute (1). Curiosamente, a obra só decorre em pleno tribunal durante pouco tempo, mas aborda temas muito interessantes no âmbito da justiça. Fá-lo discretamente, através de uma subtil e poética crónica da vida de uma pequena comunidade norte-americana, durante os anos 30, atravessa-se então a Grande Depressão.
Visto pelos olhos de duas crianças, Jem e Scout (Phillip Alford e Mary Badham), filhos de Atticus Finch (Gregory Peck), um advogado viúvo, de uma integridade a toda a prova, o esquema de “Na Sombra e no Silêncio” não se esgota na estrutura do vulgar filme de tribunal, rodando em redor da troca de argumentos entre acusação e defesa. Vai muito mais longe do que isso, pretendendo ser um retrato de uma época, um período dominado pela miséria e a necessidade mais primária (um dos habitantes da terra, que Atticus defendera, paga-lhe em géneros, como sacos de nozes), um racismo violento (que durante muito tempo caracterizou o Alabama como um dos estados mais trágicos neste registo de violência), um conservadorismo reaccionário como poucos (veja-se, na sequência do tribunal, a constituição do júri que julga um possível caso de violação de uma branca por um negro que é formado apenas por homens brancos).
Falando de Monroeville. Acontece que quando Robert Mulligan e o seu amigo e produtor Alan J. Pakula (igualmente realizador de alguns filmes brilhantes) visitaram Monroeville, para escolherem possível locais de filmagem, encontraram uma cidade muito modificada, onde muito pouco puderam rodar. Optaram por reconstruir as ruas de Monroeville nos estúdios da Universal, e o resultado não deixa de ser excelente pela credibilidade do produto final. Credibilidade que lhe é anualmente reconhecida por mais de 30.000 turistas, que a visitam em busca dos locais onde se terão passado as cenas do livro e do filme. Tudo isso transformou Monroeville e Monroe County na "Literary Capital of Alabama."

O retrato que Mulligan oferece de uma comunidade não se fica apenas por uma linha ficcionista linear, mas tece uma inteligente e sensível teia de emoções que o facto de os protagonistas serem crianças reforça por essa aprendizagem de vida. Jem e Scout vão descobrindo o que é o racismo, vão surpreendendo o medo, quando lho incutem ao falarem de um vizinho fantasmagórico, medonho, que vive fechado na casa ao lado da sua, aprisionado pelo pai, “um homem muito mau”. É um filme que, através de pequenos apontamentos, nos alerta para “o compromisso” que decorre do facto de se viver em sociedade, para o respeito pelo outro, quer seja um suposto “monstro” (que afinal não passa de um tímido jovem desambientado) ou seres com a pele de cor diferente.
“To Kill a Mockingbird” arranca com um genérico muito bonito, que irá dar o tom simbólico a toda a obra. São pequenos objectos guardados numa caixa que se abre e se vão revelando, como se irá revelar a dureza da vida a cada um dos jovens que a guardam. Há segredos, “coisas feias e más do mundo” que Scout e Jem vão descobrindo, assim como se vai exibindo a seus olhos a dignidade do ser humano, que não hesita em lutar por causas justas, mesmo pondo a sua vida em risco.


O drama de Harper Lee, que lhe mereceu o Prémio Pulitzer de 1961, passa-se em Maycomb, cidadezinha imaginária, em grande parte inspirada na cidade natal de Lee, Monroeville, no Estado do Alabama. Curiosamente, esta é uma autora de um único romance, o que lhe bastou para ser considerada uma das grandes vozes da literatura norte-americana. Conta-se que terá auxiliado muito um outro conterrâneo seu, Truman Capote, nascido na mesma cidade e seu amigo de infância, quando este preparava na região a escrita de “A Sangue Frio”.
Durante muitos anos, “To Kill a Mockingbird” (Mataram a Cotovia, na sua tradução portuguesa) e de uma dezena de artigos dispersos por publicações várias, tinha sido tudo quanto Harper Lee dera aà luz, reservando-se numa vida discreta e retirada. Muito recentemente, apareceu o seu segundo romance, “Vai e Põe Uma Sentinela” (Go Set a Watchman), inédito até então por vontade da autora, e cujo manuscrito se julgava perdido.
Descoberto em 2014, mantém muitos dos personagens dessa mítica obra, agora 20 anos mais velhos. Não terá trazido nada de muito significativo a “Não Matem a Cotovia” que alcançou projecção mundial aquando da sua publicação e posterior premiação, depois muito reforçada com a sua adaptação a filme, ele próprio um êxito de público e de crítica, triunfando em diversos importantes festivais e atingindo oito nomeações para os Oscars de 1963, tendo ganho três (Melhor Actor, Gregory Peck; Melhor Argumento Adaptado, Horton Foote; Melhor Direcção Artística, a preto e branco, Alexander Golitzen, Henry Bumstead, Oliver Emert). As outras nomeações foram para Melhor Filme, Alan J. Pakula; Melhor Realizador, Robert Mulligan; Melhor Actriz Secundária, Mary Badham; Melhor Fotografia a preto e branco, Russell Harlan; e Melhor Partitura Musical, Elmer Bernstein.
Deve dizer-se que Gregory Peck tem aqui a melhor representação de toda a sua filmografia, sendo que os miúdos Phillip Alford e Mary Badham, sobretudo esta última, arrancam trabalhos inesquecíveis. Curiosidade: o misterioso e inquietante vizinho Boo Radley (nome que faz relembrar o mítico Boogeyman, o monstro dos contos de terror que servia para amedrontar as crianças) é interpretado por Robert Duvall, num dos seus primeiros trabalhos no cinema. Também ele irá protagonizar uma das cenas mais curiosas de um ponto de vista jurídico: um xerife resolve abafar um crime, transformando-o em acidente, pois de outra forma seria como “matar um rouxinol”, afinal a grande, ou uma das grandes, conclusões desta obra magnífica, onde a banda sonora e a fotografia a preto e branco muito contribuíram para o seu estrondoso sucesso.
Robert Mulligan (1925–2008) foi um brilhante realizador norte-americano, de televisão e cinema, tendo deixado um importante conjunto de obras de fundo humanista, excelentes retratos de jovens e inspiradas reconstituições de ambientes sociais, entre os quais este “To Kill A Mockingbird” (1962), mas também “Amar Um Desconhecido” (Love with the Proper Stranger,1963), “O Estranho Mundo de Daisy Clover” (Inside Daisy Clover,1965), “Errando pelo Caminho” (Baby the Rain Must Fall, 1965), “O Último Degrau” (Up the Down Staircase, 1967), “Emboscada na Sombra” (The Stalking Moon, 1969), “Verão de 42” (Summer of '42, 1971), “Em Busca da Felicidade” (The Pursuit of Happiness, 1971), “O Outro” (The Other, (1972), À Mesma Hora para o Ano Que Vem” (Same Time, Next Year, 1978) ou “O Homem da Lua” (The Man in the Moon, 1991). Durante os anos 60, colaborou várias vezes com o seu amigo produtor Alan J. Pakula.

NA SOMBRA E NO SILÊNCIO
To Kill a Mockingbird (original title)

Realização: Robert Mulligan (EUA, 1962); Argumento: Horton Foote, segundo romance de Harper Lee ("To Kill a Mockingbird"); Produção: Alan J. Pakula; Música: Elmer Bernstein; Fotografia (p/b): Russell Harlan; Montagem: Aaron Stell; Direcção artística: Henry Bumstead, Alexander Golitzen; Decoração: Oliver Emert;  Guarda-roupa: Rosemary Odell; Maquilhagem: Larry Germain, Bud Westmore, Frank Prehoda, Lavaughn Speer; Direcção de produção: Edward Muhl, Ernest B. Wehmeyer; Assistentes de realização: Joseph E. Kenney, Terry Morse Jr., Charles R. Scott Jr.; Departamento de arte: Gene Johnson, Fred Knoth; Som: Corson Jowet, Waldon O. Watson, Charlie Cohn, James Curtis, James V. Swartz;  Efeitos Especiais: Don Wolz; Companhias de Produção: Universal International Pictures, Pakula-Mulligan, Brentwood Productions; Intérpretes: Gregory Peck (Atticus Finch), John Megna (Dill Harris), Frank Overton (Sheriff Heck Tate), Rosemary Murphy (Maudie Atkinson), Ruth White (Mrs. Dubose), Brock Peters (Tom Robinson), Estelle Evans (Calpurnia), Paul Fix (Juiz Taylor), Collin Wilcox Paxton (Mayella Violet Ewell), James  (Bob Ewell), Alice Ghostley (Tia Stephanie Crawford), Robert Duvall (Boo Radley), William Windom (Mr. Gilmer), Crahan Denton (Walter Cunningham Sr.), Richard Hale (Nathan Radley), Mary Badham (Scout), Phillip Alford (Jem), R.L. Armstrong, Bobby Barber, Danny Borzage, Jess Cavin, Steve Condit, David Crawford, Jamie Forster, Charles Fredericks, Jester Hairston, Chuck Hamilton, Kim Hamilton, etc Duração: 129 minutos; Classificação etária: M7 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Universal Pictures Portugal, Lda.; Data de estreia em Portugal: 14 de Abril de 1965.

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