domingo, 28 de maio de 2017

AMÉRICA, AMÉRICA


AMÉRICA, AMÉRICA (1963)

Principia-se por ouvir a voz de Elia Kazan: “O meu nome é Elia Kazan. Tenho sangue grego, sou turco por nascimento e americano porque o meu tio fez uma viagem”. E continua a narrativa: “Esta história foi-me contada pelos mais velhos da família. Eles recordavam a Anatólia, esse planalto no centro da Turquia. A Anatólia também é arménia e grega, mas há 500 anos os turcos conquistaram-na. A partir daí, houve conquistadores e conquistados”.
Assim se inicia “América, América”, filme obviamente autobiográfico, mas de um tipo de autobiografia coral. Não é só a vida de Elia Kazan que nos é contada, mas a de muitos e muitos emigrantes gregos, arménios, turcos, e de tantas outras origens que demandaram a América enquanto símbolo de uma terra prometida. 
Elia Kazan (Elias Kazanjoglou era o nome de baptismo) nasceu em Constantinopla, cidade então do Império Otomano (hoje Istambul, na Turquia), a 7 de Setembro de 1909. Mas foi grego o registo da sua nacionalidade, dado que os pais tinham essa origem. Aos quatro anos de idade, a família emigrou para Nova Iorque e leva-o consigo, perseguindo sonhos e quimeras que a América, terra das oportunidades, não deixava de criar nos pobres europeus do velho continente. Estabeleceram-se com um negócio de tapetes, e Elia começou os seus estudos em Nova Iorque, passando depois para a Mayfair School de New Rochelle, para onde os pais se mudaram, vindo a terminar o curso no Williams College, em 1930, prosseguindo depois uma especialização no Drama Department of Yale, dando assim vazão à sua paixão pelo teatro. 
Em 1932, é actor e assistente de encenação no Group Theatre, uma companhia teatral formada há muito pouco por Lee Strasberg e Harold Clurman. Por essa altura, na cena nova-iorquina, este grupo e o Federal Theatre, de Orson Welles e John Houseman, eram as companhias de vanguarda, destacando-se quer pelas suas ideias progressistas, radicadas nos ideais do “New Deal”, de Roosevelt, mas também nas ideologias socialistas e comunistas, muito em voga nessa época nos meios intelectuais norte-americanos, quer pelo arrojo formal da sua concepção cénica.
Como actor, Kazan interpreta personagens proletárias de obras de Clifford Odets, dedica-se a acções de empenhamento social, distribui propaganda e filia-se no Partido Comunista, onde permanece pouco tempo. Desse período de actor retêm-se as suas participações em peças de grandes autores norte-americanos, nomeadamente Clifford Odets. Durante este período de aprendizagem, foi decisivo o seu trabalho com encenadores como Lee Strasberg, Clifford Odets ou Harold Clurman. Pouco depois de se estrear como actor, e de passar por algumas outras tarefas, como director de cena e produtor, encena já algumas das peças que irão figurar no seu registo mítico e que o transformaram numa lenda viva, ao criar uma das mais vertiginosas e retumbantes carreiras teatrais de todos os tempos. 
Em 1947, cria o “Actor’s Studio” juntamente com Lee Strasberg, e com “All My Sons”, de Arthur MiIIer, uma produção Harold CIurman, EIia Kazan, WaIter Fried e Herbert H. Harris, no Coronet Theatre, inicia a sua época de ouro como encenador, continuada com “A Streetcar Named Desire”, de Tennessee Williams, que representa o triunfo do “Método”, criado pelo “Actor’s Studio”. 1948 fica marcado por “Sundown Beach”, de Bessie Breuer, e “Love Life”, de Alan Jay Lerner, 1949 é o ano de “Death of a Salesman”, de Arthur Miller.
“Flight Into Egypt”, de George Tabori (1952), “Camino Real”, de Tennessee Williams (1953), “Tea and Sympathy”, de Robert Anderson, “Cat on a Hot Tin Roof”, de Tennessee Williams (1955), “The Dark at the Top of the Stars”, de William Inge (1957), “J. R.”, de Archibald MacLeish (1958) e “Sweet Bird of Youth”, de Tennessee Williams (1959) são outros espectáculos memoráveis.
Em 1964, depois de um curto período de ausência dos palcos, Kazan regressa com as encenações de “After the Fall”, de Arthur Miller, “But For Whom Charlie”, de S. N. Behrmano e “The Changeling”, de Thomas Middleton e William Rowley, todas com produção do Repertory Theater of Lincoln Center no ANTA Washington Square Theatre. 
Durante grande parte desta carreira teatral, Kazan combinou este trabalho no palco com o de realizador de cinema. A sua derradeira colaboração com o teatro foi a co-direcção do Repertory Theatre of Lincoln Center for the Performing Arts, que teve a seu cargo entre 1963 e 1964, abandonando definitivamente os palcos depois disso. A sua actividade teatral permitiu-lhe dirigir directamente alguns dos maiores actores do teatro e do cinema norte-americanos, tais como Van Heflin, Lee J. Cobb, Frances Farmer, Will Lee, Ruth Gordon, E. G. Marshall, Montgomery Clift, Fredric March, Burl Ives, Barbara Bel Geddes, Jan SterIing, Ed BegIey, Arthur Kennedy, Karl Malden. MarIon Brando, Kim Hunter, Jessica Tandy, Martin Balsam, Julie Harris, Cloris Leachman, Arthur Kennedy, Zero Mostel, Paul Lukas, Jo Van Fleet, Frank Silvera, Eli Wallach, Deborah Kerr, Ben Gazzara, Pat Hingle, Teresa Wright, Chritopher Plummer, Raymond Massey, Paul Newman, Geraldine Page, Jason Robards, Faye Dunaway, Ralph Meeker, Hall Holbrook, Barry Primus, ou mesmo alguns cineastas que atravessaram períodos de carreira como actores, casos de Martin Ritt, Nicholas Ray, Lou Antonio, entre outros.
A partir de 1945, Kazan passa ao cinema, convidado pela 20th Century Fox para integrar a sua equipa de realizadores, numa altura em que os estúdios norte-americanos procuram avidamente novos talentos. Elia Kazan fora para Hollywood depois do Group Theatre fechar as portas. Em Hollywood, intervém como actor em duas películas de Anatole Litvak: “City for Conquest” (1940) e “Blues in the Night” (1941). Antes, porém, ainda bastante jovem, já havia colaborado numa comédia, ainda na década de 30, “Pie in the Sky” (1934) e tentado a realização com dois documentários institucionais, “The People of the Cumberlands” (1937), uma produção Frontier Films, e “It's Up To You” (1941), uma produção do Ministério da Agricultura.
Mas a estreia no filme de ficção dá-se precisamente em 1954, com “A Tree Grows in Brooklyn”, história de uma família de emigrantes irlandeses, aliás um dos temas que mais fortemente irá impregnar toda a filmografia deste autor, profundamente preocupado com a inserção social das suas personagens. Isso mesmo se irá confirmar nas suas realizações seguintes, “Boomerang” (1947), que aborda a justiça, os seus mecanismos e a possibilidades do erro judiciário, ou “Gentleman's Agreement” (1947), denunciando o racismo, neste caso o anti-semitismo. Será, todavia, em “Panic in the Streets” (1950), um “filme negro” invulgar que se irá impor como um nome incontornável na cinematografia norte americana dessa época. Posteriormente, em 1951, dirige Marlon Brando em “Um Eléctrico Chamado Desejo” (sua primeira adaptação teatral ao cinema) e “Viva Zapata!” e, posteriormente, em “Há Lodo no Cais” (1954). Por esta altura, numa época em que o Maccarthismo ameaçava a sociedade norte-americana, Kazan protagoniza um episódio chave da sua vida, denunciando companheiros de trabalho que pertenceram, como ele, ao Partido Comunista, publicando um anúncio onde confessava essas actividades, e depondo perante a Comissão das Actividades Anti-americanas. Esta sua atitude iria marcar todo o seu futuro, em particular a sua obra, que irá procurar justificar o seu comportamento. “Há Lodo no Cais” e “Viva Zapata!” são algumas dessas etapas.
Em “On the Waterfront”, escrito por Budd Schulberg, Kazan, através da personagem interpretada por Marlon Brando, tenta fazer perceber aos outros a lógica da sua denúncia, servindo-se de um caso de corrupção no ambiente do sindicalismo. O delator confronta-se com a sua consciência, mas um imperativo moral leva-o a denunciar (falsos) amigos e a pôr a claro a podridão que campeia numa organização mafiosa.
Em 1955, roda “A Leste do Paraíso” com um novo actor em quem deposita toda a confiança, voltando a acertar em cheio: James Dean brilhará para sempre como o retrato do jovem revoltado “sem causa”, que ainda sobrevive presentemente na mitologia mundial. “Esplendor na Relva” (1961), segundo John Steinbeck, é outra das suas obras assumidamente autobiográficas, até se chegar a “America, América” (1963), que fala directamente de si, da sua chegada à América e da sua família. Os seus últimos filmes são “O Compromisso” (1969), uma adaptação de um romance seu que é outro momento confessional, “Os Visitantes” (1972), uma obra experimental, com poucos recursos, percorrendo os caminhos imaginados pelo escritor Chris Kazan, seu filho, anunciando então a sua retirada também do cinema. Mas regressa com “O Último Magnate” (1979), dirigindo outro monstro sagrado, Robert De Niro, e onde empreende uma meditação sobre Hollywood e o cinema. 
Falando abertamente de “América, América”, esta obra inicia-se em 1896. Stavros Topouzoglou (Stathis Giallelis) é um jovem nascido na Anatólia, numa altura em que a região era dominada por turcos, muito embora ali vivessem gregos e arménios como povos subjugados. Com alguns anos de atraso, poderia bem ser o caso de Elia Kazan. Stavros vive desde há muito obcecado pela ideia de partir para a América, terra das grandes oportunidades. Caminhando pela terra inóspita da Anatólia, ao lado de um tio, vai-lhe perguntado se na América há montanhas tão grandes quanto aquelas, ao que o tio lhe responde: “Na América é tudo maior”. O sonho de Stavros transborda. Entretanto, um grupo de arménios assalta um banco em Constantinopla, a repressão turca recrudesce, os pais de Stavros enviam-no para a Constantinopla para junto de um familiar que vende tapetes (tal como os pais de Kazan). Mas Stavros não pensa em ficar, mas em partir. Atravessar os oceanos e descortinar no horizonte a Estátua da Liberdade. Até lá chegar, muito terá de penar, de sofrer, de não desistir a cada nova contrariedade, a cada embuste, a cada nova traição. A sua fé é tão grande que Stavros já é conhecido por “América, América”. 
O filme, rodado a preto e branco, com uma imagem contrastada de Haskell Wexler, é brilhante na criação de ambientes, no desenho das personagens, no desenrolar das situações, no rigor e na contensão que impõe aos sentimentos e às emoções. Nesse aspecto, a direcção artística de Gene Callahan é soberba na justeza, bem como a montagem nervosa de Dede Allen. A música de Manos Hatzidakis integra-se perfeitamente neste universo de uma claustrofobia contagiante, que só a fé desmedida de Stavros contraria. A sua esperança na chegada à América resiste, mesmo para lá da completa desilusão que é enfrentar uma realidade igualmente hostil e violenta, onde as desigualdades sociais e a aspereza das condições de sobrevivência não diferem muito das que conhecia na Anatólia. 
Este filme é uma memória viva, a consciencialização de uma realidade em confronto com os sonhos. A verdade é que Ela Kazan, o cineasta, triunfou na América e a sua história é um pouco a concretização de um sonho e a confirmação da América como a terra da esperança e das oportunidades. Mas por alguém que triunfa, quantos sonhos não esbarram no maior dos infortúnios? Kazan, agradecido à América, não deixa de apontar o olhar crítico a uma terra com tudo para ser também madrasta.  Resta dizer que os actores são brilhantes e que “América, América” demonstra, sem sombra para dúvidas, que aquela foi, e é, uma terra de emigrantes. 

AMÉRICA, AMÉRICA 
Título original: America America 
Realização: Elia Kazan (EUA, 1963); Argumento: Elia Kazan, segundo romance seu; Produção: Charles H. Maguire, Elia Kazan; Música: Manos Hatzidakis; Fotografia (p/b): Haskell Wexler; Montagem: Dede Allen; Design de produção: Gene Callahan; Direcção artística: Vassilis Photopoulos; Guarda-roupa: Anna Hill Johnstone; Maquilhagem: Eligio Trani; Som: Jean Bagley, Edward Beyer, Jack Fitzstephens, Le Roy Robbins, Dick Vorisek, Stanley Bixtel; Companhias de produção: Athena Enterprises, Warner Bros.;Intérpretes: Stathis Giallelis (Stavros Topouzoglou), Frank Wolff (Vartan Damadian), Harry Davis (Isaac Topouzoglou), Elena Karam (Vasso Topouzoglou), Estelle  (Avó Topouzoglou), Gregory Rozakis (Hohannes Gardashian), Lou Antonio (Osman), Salem  (Odysseus Topouzoglou), John Marley (Garabet), Joanna Frank (Vartuhi), Paul Mann (Aleko Sinnikoglou), Linda Marsh (Thomna Sinnikoglou), Robert H. Harris, Katharine Balfour, Giorgos Foundas, Tom Holland, Elia Kazan (voz), Dimitris Nikolaidis, Dimos Starenios, etc. Duração: 174 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): inexistente; Edição vídeo em Portugal: Filmes Lusomundo (colecção Argos); Distribuição internacional (DVD): Regia Films (Espanha); Classificação etária: M/ 12 anos. Versão inglesa, com legendas em espanhol. 

terça-feira, 16 de maio de 2017

17 DE MAIO: 12 ANOS ESCRAVO



12 ANOS ESCRAVO (2013)

Arrisco-me a escrever que “12 Anos Escravo” é o melhor filme sobre a questão da escravatura que eu alguma vez vi. E vi muitos, e alguns muito bons. Mas esta obra de Steve McQueen (autor anterior de filmes magníficos, como “Fome” e “A Vergonha”) ultrapassa-os a todos. Vamos ver se consigo explicar o porquê desta minha conclusão, e o que me terá levado a ela.
Antes de tudo o mais, o argumento é de uma inteligência extrema, adaptando uma obra autobiográfica, “Twelve Years a Slave”, de Solomon Northup, obra surgida em 1853. A história, muito resumidamente, relata as desventuras de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), um negro livre que vive desafogadamente em Nova Iorque, corre o ano de 1841. Solomon é homem instruído, culto, violoncelista, casado e pai de dois filhos. Um dia é aliciado para se juntar, durante algumas semanas, a dois artistas circenses, e parte pensando arrecadar alguns dólares extra com a tournée. Sem que nada o faça prever, é raptado em Washington e levado prisoneiro para os Estados do Sul, onde a escravatura era a base da economia rural, que tinha na apanha do algodão o seu maior tesouro e na mão-de-obra escrava a razão principal do seu excessivo lucro. Aí vai passando de dono em dono, até se ver instalado na propriedade de Edwin Epps (Michael Fassbender), um latifundiário sem escrúpulos, que o trata selvaticamente, tal como a todos os outros, incluindo a sua negra “protegida”, Patsey (Lupita Nyong'o). O pesadelo de Solomon Northup estende-se por uns longos doze anos, até que consegue ser resgatado por amigos do Norte que formalizam com documentos, junto às autoridades do Sul, a sua condição de homem livre.


Há desde logo um aspecto que torna este filme diferente da grande maioria de outros títulos onde a escravatura é abordada. Antes de ser escravo, Solomon Northup é um homem livre, gozando de todos os direitos e deveres de um cidadão como qualquer outro que, em 2013, está a ver o filme. Esta identificação é decisiva para o impacto da obra. Ela mostra o absurdo da escravatura, o arbitrário de alguém ser livre agora e escravo no momento seguinte, por um simples acto de pirataria, criminoso num Estado, legalizado num outro. (É conveniente ter-se em conta que o filme se passa num período anterior à Guerra da Secessão norte-americana, que se irá prolongar entre 1861 e 1865, opondo precisamente os Estados do Norte industrializado aos do Sul rural). Depois, existe um inquietante sentido de normalidade ao longo de todo o filme, a realidade presente de uma actividade consentida e instituída, onde o Mal impera sem necessidade de disfarces ou desculpas. Estamos no domínio do terrível absurdo, mas de um absurdo banalizado, normalizado.
Deve ainda sublinhar-se uma outra questão que julgo essencial na obra: Solomon Northup é um herói na forma como consegue sobreviver à sua tragédia pessoal, mas essa sobrevivência impõe-lhe regras e sujeições que o transformam não num herói, mas num anti-herói. Ele tem de esconder a sua cultura e a sua condição, não confessa aos seus “donos” que sabe ler, aceita ver açoitar uma mulher indefesa, vê morrer companheiros de desdita, atravessa quase sempre calado um calvário de brutalidade sem nome. Numa situação limite, ele é apenas humano: quer viver. Sobreviver. A 12 anos de escravatura.


Este aspecto liga-se ao que me parece o mais importante no filme de Steve McQueen, que é a forma escolhida pelo realizador para narrar a sua história. Não há qualquer transigência com o melodramático ou a demagogia emocional. A escrita é dura e enxuta, sem rodriguinhos, a câmara enquadra de forma justa e directa, num estilo seco e objectivo. A violência existe e explode mas o olhar é distante, não por desinteresse mas por respeito. O resultado é mais grave para o espectador que se confronta ele próprio com as imagens. Por vezes, a montagem acelera, aqui e ali há um efeito certo e eficaz (o barco que leva os escravos, trajecto que é visto através das rodas que fazem avançar a embarcação, por exemplo, ou o travelling vertical que sobe da cave onde se encontram os prisioneiro, até se descobrir o outro lado de Washington). Mas o essencial de “12 Anos Escravo” é “mostrar” para o espectador ter a liberdade de perceber por si próprio, tirar as conclusões sem dirigismos constrangedores.
Produzido entre outros por Steve McQueen e Brad Pitt, tudo em “12 Years a Slave” parece perfeito, imaginado e concretizado como não pudesse ser de outra forma. Adam Stockhausen, David Stein, Alice Baker e Patricia Norris assinam direcção artística, decoração e guarda-roupa com um requinte e cuidado extremos; a fotografia de Sean Bobbitt é notável, assim como a brilhante montagem de Joe Walker e a inspirada partitura musical de Hans Zimmer. Na interpretação, raras vezes se encontra um elenco com tamanho talento, sobriedade e fulgor. Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti, Lupita Nyong'o, Sarah Paulson ou Brad Pitt são simplesmente brilhantes, fazendo de “12 Anos Escravo” uma obra-prima que brilhou na noite nos Oscars.


12 ANOS ESCRAVO
Título original: 12 Years a Slave
Realização: Steve McQueen (EUA, 2013); Argumento: John Ridley, segundo obra de Solomon Northup ("Twelve Years a Slave"); Produção:  Dede Gardner, Anthony Katagas, Jeremy Kleiner, Steve McQueen, Arnon Milchan, Brad Pitt, Bill Pohlad, John Ridley, Tessa Ross; Música: Hans Zimmer; Fotografia (cor): Sean Bobbitt; Montagem: Joe Walker; Casting: Francine Maisler; Design de produção: Adam Stockhausen; Direcção artística:  David Stein; Decoração:  Alice Baker; Guarda-roupa: Patricia Norris; Maquilhagem: Ma Kalaadevi Ananda, Nana Fischer, Adruitha Lee; Direcção de Produção:  Alissa M. Kantrow, Alissa M. Kantrow; Assistentes de realização: Doug Torres, Mark Carter, Nathan Parker, James Roque, Ann C. Salzer, Sherman Shelton Jr.; Departamento de arte: Carl Counts, Matthew Gatlin, David Rotondo, Walter Schneider, Jim Wallis; Som: Ryan Collins, Jesse Ehredt, Kirk Francis, Robert Jackson, Robert Jackson, Tim Limer, Jordan O'Neill; Efeitos especiais: David Nash; Efeitos visuais: Elbert Irving IV, Chris LeDoux, Katie McCall, Dottie Starling; Companhias de produção: Regency Enterprises, River Road Entertainment, Plan B Entertainment, New Regency Pictures, Film4, Regency Enterprises; Intérpretes: Chiwetel Ejiofor (Solomon Northup), Michael Fassbender (Edwin Epps), Benedict Cumberbatch (William Ford), Paul Dano (John Tibeats), Paul Giamatti (Theophilus Freeman), Lupita Nyong'o (Patsey), Brad Pitt (Samuel Bass), Alfre Woodard (Harriet Shaw), Sarah Paulson (Mary Epps), Quvenzhané Wallis (Margaret Northup), Dwight Henry (Tio Abram), Michael K. Williams (Robert), Garret Dillahunt (Armsby), Scoot McNairy (Brown), Ruth Negga (Celeste), Adepero Oduye (Eliza), Chris Chalk (Clemens Ray), Christopher Berry (James Burch), Taran Killam (Hamilton), Dickie Gravois, Bryan Batt, Ashley Dyke, Kelsey Scott, Cameron Zeigler, Tony Bentley, Bill Camp, Mister Mackey Jr., Craig Tate, Storm Reid, Tom Proctor, Marc Macaulay, Vivian Fleming-Alvarez, Douglas M. Griffin, John McConnell, Marcus Lyle Brown, Richard Holden, Rob Steinberg, Anwan Glover, James C. Victor, Liza J. Bennett, Nicole Collins, J.D. Evermore, Andy Dylan, Deneen Tyler, Mustafa Harris, Gregory Bright, Austin Purnell, Thomas Francis Murphy, Andre De'Sean Shanks, Kelvin Harrison, Scott Michael Jefferson, Alfre Woodard, Isaiah Jackson, Garret Dillahunt, Topsy Chapman, Devin Maurice Evans, Jay Huguley, Devyn A. Tyler, Willo Jean-Baptiste, etc. Duração: 134 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 2 de Janeiro de 2014.

sábado, 6 de maio de 2017

10 DE MAIO: DR. ESTRANHO AMOR


DOUTOR ESTRANHOAMOR (1964)  
 DOUTOR ESTRANHOAMOR (1964)
Sob a fórmula de sátira que leva ao absurdo as consequências últimas da Guerra Fria, “Doutor EstranhoAmor” alerta-nos para os perigos de um desastre nuclear, pondo a descoberto os índices de falibilidade das medidas de segurança utilizadas, perante o gigantismo dos interesses económicos e da tecnologia bélica. Kubrick afirmou-o, aquando da estreia: “Trata-se de um filme que mostra um general louco que lança bombardeiros atómicos sobre um país adversário. A partir daí o mundo começa a levar as coisas a sério, só que é um pouco tarde.”
“Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb”, com argumento de Stanley Kubrick, Terry Southern, Peter George, segundo romance de Peter George (“Red Alert”, ou “Two Hours to Doom”) vê a sua acção polarizada em três cenários diferentes, mas convergentes nas suas acções que se interpenetram, numa montagem em paralelo: uma base militar norte-americana, isolada, onde se encontra um general enlouquecido; a sala redonda do Pentágono, onde o presidente dos Estados Unidos e os seus conselheiros políticos e militares tentam remediar a sabotagem; o interior de um bombardeiro que depois de ter recebido ordens para dar cumprimento ao plano de “ataque R”, se precipita para o interior da União Soviética, com a finalidade de destruir objectivos militares. Da conjugação das situações nestes três locais nasce o suspense desta obra de humor corrosivo, brilhantemente interpretada por Sterling Hayden (o brigadeiro Jack D. Ripper, um perigoso belicista louco), Peter Sellers (compondo três personagens: capitão Lionel Mandrake, adjunto de Jack D. Ripper, Merkin Muffley, presidente dos EUA e Dr.Stangelove, um técnico alemão, meio robot, com um teimoso braço direito que não se cansa de se projectar para a frente, numa clara saudação nazi), George C. Scott (general 'Buck' Turgidson), Keenan Wynn (coronel 'Bat' Guano) ou Slim Pickens (major T.J. 'King' Kong).


Este filme integra-se numa corrente de ficção política que na década de 60 teve várias obras de idênticas intenções, nomeadamente “Sete Dias em Maio”, de John Frankenheim, e “Missão Suicida”, de James B. Harris, até então produtor de Stanley Kubrick, e que com essa realização se emancipava como director, iniciando uma nova carreira. Mas este filme de Kubrick é claramente superior às outras obras (muito embora a evidente qualidade de ambas), e isso deve-se à magnífica realização deste cineasta, e sobretudo ao tom de humor escolhido. Kubrick não perde uma oportunidade para sublinhar um efeito de sátira: o piloto do bombardeiro norte-americano lança-se sobre terra russa, cavalgando uma bomba nuclear, tal como um vulgar cowboy de tempos heroicos; toda a carga simbólica de personagens como o brigadeiro louco (e a sua teoria da ameaça bolchevista: a degenerescência dos fluídos corpóreos!); o próprio Dr. Stangelove; a crítica ostensiva ao militarismo de um inconsciente general Buck Turgidson, que, depois de desencadeada a crise, já com os bombardeiros a caminho da URSS, justifica o aproveitamento desta decisão, com a explicação de que uma tal ocorrência apanharia os soviéticos desprevenidos e permitiria acabar com o seu poderio, “com um mínimo de perdas humanas, qualquer coisa como apenas 120 milhões de soviéticos e 20 milhões de americanos”; ou ainda o fabuloso bailado final, quando sucessivas explosões nucleares se fundem num apocalíptico cogumelo de destruição, tendo como banda sonora uma romântica valsa (sequência que está certamente na origem de certas ideias de sonoplastia desenvolvidas depois em 2001).
Um filme brilhante, de um homem desencantado e corrosivo quanto ao futuro do Homem. Um futuro que Kubrick irá antever sob uma perspectiva inteiramente nova, no filme seguinte, a sua primeira incursão no campo da ficção científica, “2001: Odisseia no Espaço”.


DR. STRANGELOVE
Título original: Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb
Realização: Stanley Kubrick (Inglaterra, 1964); Argumento: Stanley Kubrick, Terry Southern, Peter George, segundo romance de Peter George (“Red Alert”, ou “Two Hours to Doom”); Música: Laurie Johnson; Fotografia (p/b):  Gilbert Taylor; Montagem: Anthony Harvey; Design de produção: Ken Adam; Direcção artística: Peter Murton; Maquilhagem: Stuart Freeborn, Barbara Ritchie; Direcção de produção: Clifton Brandon; Assistentes de realização: Eric Rattray; Som: John Aldred, Richard Bird, John Cox, Leslie Hodgson; Efeitos Especiais: Wally Veevers, Alan Bryce, Arthur 'Weegee' Fellig, Brian Gamby, Garth Inns, Mike Shaw; Efeitos visuais: Vic Margutti; Produção: Stanley Kubrick, Victor Lyndon, Leon Minoff.; Intérpretes: Peter Sellers (Capitão Lionel Mandrake/Presidente Merkin Muffley/Dr. Strangelove), George C. Scott (General 'Buck' Turgidson), Sterling Hayden (Brigadeiro Jack D. Ripper), Keenan Wynn (Coronel 'Bat' Guano), Slim Pickens (Major T.J. 'King' Kong), Peter Bull (Embaixador soviético Alexi de Sadesky), James Earl Jones (Tenente Lothar Zogg), Tracy Reed (Miss Scott), Jack Creley (Mr. Staines), Frank Berry (Tenente  H.R. Dietrich), Robert O'Neil (Almirante Randolph), Glenn Beck (Tenente  W.D. Kivel), Roy Stephens (Frank), Shane Rimmer (Capitão G.A. 'Ace' Owens), Paul Tamarin (Tenente  B. Goldberg), Gordon Tanner (General Faceman), John McCarthy, Hal Galili, Laurence Herder, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 25 de Julho de 1974. 

domingo, 23 de abril de 2017

26 DE ABRIL: OS HOMENS DO PRESIDENTE


OS HOMENS DO PRESIDENTE (1976)

1. Sábado, 17 de Junho de 1972, 2.30 da madrugada, cinco homens penetram no Watergate Office Building, em Washington, e entram na sede do Comité Nacional do Partido Democrático, que se encontra ali instalado. Trata-se de um assalto. Com fins que se suspeita inconfessáveis, quando os assaltantes são surpreendidos pela polícia. Os cinco homens fotografam documentação e colocam microfones que iriam permitir escutar as conversas ali mantidas. Não são gatunos vulgares. Vestem elegantemente e dispõem de máquinas e aparelhos extremamente sofisticados. Presos, irão ser julgados. Como normalmente, os jornais delegam para estes casos de aparente pouca importância, os “fait divers” do dia-a-dia de uma grande metrópole, os seus repórteres estagiários. É aí que se “roda” o ofício e adquire experiência. “The Washington Post”, por exemplo, envia para “cobrir” o julgamento Bob Woodward, um jovem com nove meses de casa.
É Bob Woodward (Robert Redford) quem se senta na sala de audiência, pronto a redigir mais uma notícia de poucas linhas e significado meramente “anedótico”. Mas a audiência principia de forma estranha: os réus, que não tinham tido oportunidade de solicitar advogados e para os quais haviam sido indicados “oficiosos”, encontram na sala advogados de certa influência, que ali dizem estar como “observadores”. Quando o juÍz principia o interrogatório, um dos presos afirma ser de profissão “anticomunista”. Confessa-se depois “técnico de seguros” e, na resposta seguinte, denuncia todo o jogo, confessando ter trabalhado recentemente na Agência Central de Informações (vulgo CIA).
Woodward pressente neste momento que os porto-riquenhos e cubanos refugiados que se encontram na barra do tribunal não são só eles próprios, mas algo que os ultrapassa. Descobre, sobretudo, que é necessário investigar o que está por detrás daquele grupo de homens apanhados a violar um “escritório”. Regressado a “The Washington Post”, colocará estas e outras dúvidas aos seus chefes de redacção. Junta-se ao seu trabalho um outro redactor de “The Post”, Carl Bernstein (Dustin Hofman), homem de maior experiência, ainda que igualmente bastante jovem, pessoa tida como excelente “pescador” de informações. Este reforço surge a Woodward simultaneamente antipático e bem-vindo.
Acabará por aceitá-lo e partem ambos à conquista de uma cidade. No que viria a ser um dos mais importantes inquéritos jornalísticos de toda a história da América. “Uma bela prova de jornalismo à americana”, como um dos chefes de redacção de “The Post”, o chamará.
2. “All the President's Men” é o filme que Alan J. Pakula dirigiu, co-produzido por Robert Redford e Walter Coblenz, partindo do livro que entretanto Carl Bernstein e Bob Woodward editaram. O filme acompanha o percurso dos dois jornalistas que lançam o repto a uma nação e aceitam investigar as suas instituições e interrogar as pessoas até descobrirem o que quer integralmente dizer “Watergate”. O cinema americano tem uma honrosa tradição neste tipo de cinema, estilo “detective particular”, sendo muitas vezes esse “detective” um jornalista. Que o ateste Bogart em “A Última Ameaça”, por exemplo.


Desses cinco homens inicialmente apanhados, que mais não eram do que peões de um xadrez muito complexo, Woodward e Bernstein vão lentamente localizando mais nomes, referências, dados, elementos a reunir, a ligar e interligar, num majestoso puzzle que acaba por atingir os homens de confiança do presidente, e finalmente, o próprio Nixon, que se vê constrangido à demissão pública. É deste modo que se descobre que o aparelho reeleitor de Richard Nixon há já muito tempo usava e abusava das técnicas mais sujas para vencer o adversário político, neste caso o Partido Democrático, aqui encabeçado por Mac Govern. Todos os processos eram julgados próprios, da calúnia à violação de residências, das escutas telefónicas à sabotagem de reuniões privadas.
A América assiste, estupefacta. Começa por não acreditar, mas tem de aceitar a força dos argumentos apresentados pelos dois jovens jornalistas. Argumentos irrefutáveis que provam que o banditismo pode ascender também à presidência.
3. “Os Homens do Presidente” é ainda (ou talvez sobretudo?) exemplar como demonstração de uma metodologia da investigação jornalística e da ética profissional que um homem como Ben Bradlee (Jason Robards) personifica. Enquanto os repórteres esmiúçam nomes e endereços, as acusações só saem para a rua, impressas em letra de forma, quando as informações se encontram devidamente comprovadas, incontroversas. Demonstração de algo essencial em jornalismo, que será a base da própria profissão: não acusar ninguém sem um máximo de garantia da veracidade dos factos imputados.
No caso presente, todo o deslindar de “Watergate” poderá ter sido comprometido por uma informação saída a destempo. Não se trata aqui de jornalismo de sensação, emporcalhado pela ignomínia dos processos, mas de jornalismo escorreito, honestamente frontal e combativo, que sabe onde deve deter-se, obrigando-se à pausa reflexiva. “All the President's Men” é, neste aspecto, exemplar.


À fogosidade generosa e impulsiva de Bernstein e Woodward corresponde a serena determinação de Bradlee. Do trabalho conjunto surge este verdadeiro hino a uma imprensa livre e crítica, objectiva e criadora.
Sinfonia a preto e branco (ainda que rodada a cores), “All the President’s Men” alterna, por meio de uma montagem invulgar, no ritmo do corte, na segurança da elipse e do raccord, dois tempos perfeitamente definidos. De um lado, a luz berrante da redacção de “The Washington Post”, do outro, os meandros sombrios que envolvem “os homens do presidente”. A investigação é esse rasgar das trevas, esse progressivo iluminar de ambientes, esse trazer à luz de informações. O filme é a contínua revelação. O desvendar. O desobstruir. O que fica desde logo assinalado na sequência inicial, quando um edifício em completa escuridão é percorrido por cinco indivíduos, enquanto a luz vai avançando pelas salas, conquistando as trevas, rasgando a escuridão, à medida que a polícia penetra nas salas.
Por vezes é das trevas que nasce a luz, como nas cenas em que Woodward se encontra com “Garganta Funda”, seu informador secreto, elemento preponderante ao longo da investigação. Ele é o emissário da noite que aceita conferenciar com a luz. Luz que vai lentamente progredindo ao longo de garagens e ruas desertas e sombrias, de elevadores e casas sinistras, de interiores de carros e de asfaltos nocturnos.
6. De uma sobriedade de escrita que poderá julgar-se “facilidade” de escrita, mas que representa, muito pelo contrário, uma opção estética deliberada e conscientemente assumida, “All the President's Men” é um trabalho minucioso de reconstituição de ambientes, de figuras, de dados, quase podendo falar-se de um “ultra-realismo” encenado rigorosamente e que, no final, se balanceia ao ritmo e segundo o suspense de um “policial” ou de um “filme negro”. Que também é. A cuja tradição vai buscar fôlego e dinâmica própria. Porque se segue “Os Homens do Presidente” com a inquietação e a perplexidade de um “policial”, assim como se interroga a realidade com a lucidez e a perspicácia de quem acompanha um ensaio político.
O Poder, a Política. A corrupção. Derrotados pelas armas que são as teclas de uma máquina de escrever. Que explodem no écran com o impacto terrível de uma detonação mortal. “Os Homens do Presidente” abrem e fecham com a pedrada seca de um telex que grita a todo o mundo a vitória da justiça e da força dos seus argumentos. Como o recorda Bradlee: “É bom que se esqueça o mito que a Imprensa cria à volta da Casa Branca. Eles não são tão espertos como querem fazer crer”. E mais adiante: “Porque o que está em causa neste caso é o primeiro aditamento à Constituição, a liberdade de Imprensa, mesmo o futuro do país”.
A vitória dos dois jornalistas e de “The Washington Post”, longe de ser um “final feliz” e tranquilizante para o espectador, é simultaneamente um alerta sobre a corrupção que alastra e a afirmação indesmentível da força da razão. Quando da razão se faz força, e por ela se luta. Exemplar ainda e encorajante.
7. Difícil se torna, a finalizar, sublinhar a qualidade vibrante da montagem, a eficiência simbólica da fotografia, o rigor da reconstituição. Dos intérpretes, falar da segurança de Redford (produtor do filme e um dos principais instigadores de todo o desenrolar desta reportagem explosiva) ou do talento nervoso de Dustin Hofman poderá ser desnecessário. Mas importará não esquecer o brilhantismo de todos os secundários. Jason Robards e Jack Warden à cabeça. A toda uma equipa que Alan J. Pakula soube dirigir com maestria de um «clássico» e o arrojo de um jovem, se deve este belo exercício de estilo e de moral.


OS HOMENS DO PRESIDENTE
Título original: All the President's Men

Realização: Alan J. Pakula (EUA, 1976); Argumento: William Goldman, Segundo obra de Carl Bernstein e Bob Woodward; Produção: Jon Boorstin, Michael Britton, Walter Coblenz; Música: David Shire; Fotografia (cor): Gordon Willis; Montagem: Robert L. Wolfe; Casting: Alan Shayne; Guarda-roupa: Bernie Pollack; Design de produção: George Jenkins; Decoração: George Gaines; Maquilhagem: Fern Buchner, Don L. Cash, Romaine Greene, Lynda Gurasich, Gary Liddiard; Direcção de Produção: E. Darrell Hallenbeck; Assistentes de realização: Bill Green, Kim Kurumada, Art Levinson, Charles Ziarko; Departamento de arte:  Mike Higelmire, Roger Irvin, Robert Krume, Alan Levine, Bill MacSems, George Szeptycki; Som: Clint Althouse, Milton C. Burrow, Les Fresholtz, Chris McLaughlin, James E. Webb; Efeitos especiais: Henry Millar; Companhias de produção: Warner Bros., Wildwood Enterprises; Intérpretes: Dustin Hoffman (Carl Bernstein), Robert Redford (Bob Woodward), Jack Warden (Harry Rosenfeld), Martin Balsam (Howard Simons), Hal Holbrook (Deep Throat), Jason Robards (Ben Bradlee), Jane Alexander (guarda-livros), Meredith Baxter (Debbie Sloan), Ned Beatty (Dardis), Stephen Collins (Hugh Sloan), Penny Fuller (Sally Aiken), John McMartin, Robert Walden, Frank Wills, F. Murray Abraham, David Arkin, Henry Calvert, Dominic Chianese, Bryan Clark, Nicolas Coster, Lindsay Crouse, Valerie Curtin, Gene Dynarski, Nate Esformes, Ron Hale, Richard Herd, Polly Holliday, James Karen, Paul Lambert, Frank Latimore, Gene Lindsey, Anthony Mannino, Allyn Ann McLerie, James Murtaugh, John O'Leary, Jess Osuna, Neva Patterson, George Pentecost, Penny Peyser, Joshua Shelley, Sloane Shelton, Lelan Smith, Jaye Stewart, Ralph Williams, etc. Duração: 138  minutos; Distribuição em Portugal: Warner; Classificação etária: M/ 12 anos.

domingo, 16 de abril de 2017

19 DE ABRIL: NA SOMBRA E NO SILÊNCIO


NA SOMBRA E NO SILÊNCIO (1963)

“Na Sombra e no Silêncio” (To Kill a Mockingbird), de Robert Mulligan (1963), uma produção de Alan J. Pakula, baseada no romance de Harper Lee, foi considerado o melhor filme de sempre sobre temas de tribunais, numa classificação organizada há uns anos pelo American Film Institute (1). Curiosamente, a obra só decorre em pleno tribunal durante pouco tempo, mas aborda temas muito interessantes no âmbito da justiça. Fá-lo discretamente, através de uma subtil e poética crónica da vida de uma pequena comunidade norte-americana, durante os anos 30, atravessa-se então a Grande Depressão.
Visto pelos olhos de duas crianças, Jem e Scout (Phillip Alford e Mary Badham), filhos de Atticus Finch (Gregory Peck), um advogado viúvo, de uma integridade a toda a prova, o esquema de “Na Sombra e no Silêncio” não se esgota na estrutura do vulgar filme de tribunal, rodando em redor da troca de argumentos entre acusação e defesa. Vai muito mais longe do que isso, pretendendo ser um retrato de uma época, um período dominado pela miséria e a necessidade mais primária (um dos habitantes da terra, que Atticus defendera, paga-lhe em géneros, como sacos de nozes), um racismo violento (que durante muito tempo caracterizou o Alabama como um dos estados mais trágicos neste registo de violência), um conservadorismo reaccionário como poucos (veja-se, na sequência do tribunal, a constituição do júri que julga um possível caso de violação de uma branca por um negro que é formado apenas por homens brancos).
Falando de Monroeville. Acontece que quando Robert Mulligan e o seu amigo e produtor Alan J. Pakula (igualmente realizador de alguns filmes brilhantes) visitaram Monroeville, para escolherem possível locais de filmagem, encontraram uma cidade muito modificada, onde muito pouco puderam rodar. Optaram por reconstruir as ruas de Monroeville nos estúdios da Universal, e o resultado não deixa de ser excelente pela credibilidade do produto final. Credibilidade que lhe é anualmente reconhecida por mais de 30.000 turistas, que a visitam em busca dos locais onde se terão passado as cenas do livro e do filme. Tudo isso transformou Monroeville e Monroe County na "Literary Capital of Alabama."

O retrato que Mulligan oferece de uma comunidade não se fica apenas por uma linha ficcionista linear, mas tece uma inteligente e sensível teia de emoções que o facto de os protagonistas serem crianças reforça por essa aprendizagem de vida. Jem e Scout vão descobrindo o que é o racismo, vão surpreendendo o medo, quando lho incutem ao falarem de um vizinho fantasmagórico, medonho, que vive fechado na casa ao lado da sua, aprisionado pelo pai, “um homem muito mau”. É um filme que, através de pequenos apontamentos, nos alerta para “o compromisso” que decorre do facto de se viver em sociedade, para o respeito pelo outro, quer seja um suposto “monstro” (que afinal não passa de um tímido jovem desambientado) ou seres com a pele de cor diferente.
“To Kill a Mockingbird” arranca com um genérico muito bonito, que irá dar o tom simbólico a toda a obra. São pequenos objectos guardados numa caixa que se abre e se vão revelando, como se irá revelar a dureza da vida a cada um dos jovens que a guardam. Há segredos, “coisas feias e más do mundo” que Scout e Jem vão descobrindo, assim como se vai exibindo a seus olhos a dignidade do ser humano, que não hesita em lutar por causas justas, mesmo pondo a sua vida em risco.


O drama de Harper Lee, que lhe mereceu o Prémio Pulitzer de 1961, passa-se em Maycomb, cidadezinha imaginária, em grande parte inspirada na cidade natal de Lee, Monroeville, no Estado do Alabama. Curiosamente, esta é uma autora de um único romance, o que lhe bastou para ser considerada uma das grandes vozes da literatura norte-americana. Conta-se que terá auxiliado muito um outro conterrâneo seu, Truman Capote, nascido na mesma cidade e seu amigo de infância, quando este preparava na região a escrita de “A Sangue Frio”.
Durante muitos anos, “To Kill a Mockingbird” (Mataram a Cotovia, na sua tradução portuguesa) e de uma dezena de artigos dispersos por publicações várias, tinha sido tudo quanto Harper Lee dera aà luz, reservando-se numa vida discreta e retirada. Muito recentemente, apareceu o seu segundo romance, “Vai e Põe Uma Sentinela” (Go Set a Watchman), inédito até então por vontade da autora, e cujo manuscrito se julgava perdido.
Descoberto em 2014, mantém muitos dos personagens dessa mítica obra, agora 20 anos mais velhos. Não terá trazido nada de muito significativo a “Não Matem a Cotovia” que alcançou projecção mundial aquando da sua publicação e posterior premiação, depois muito reforçada com a sua adaptação a filme, ele próprio um êxito de público e de crítica, triunfando em diversos importantes festivais e atingindo oito nomeações para os Oscars de 1963, tendo ganho três (Melhor Actor, Gregory Peck; Melhor Argumento Adaptado, Horton Foote; Melhor Direcção Artística, a preto e branco, Alexander Golitzen, Henry Bumstead, Oliver Emert). As outras nomeações foram para Melhor Filme, Alan J. Pakula; Melhor Realizador, Robert Mulligan; Melhor Actriz Secundária, Mary Badham; Melhor Fotografia a preto e branco, Russell Harlan; e Melhor Partitura Musical, Elmer Bernstein.
Deve dizer-se que Gregory Peck tem aqui a melhor representação de toda a sua filmografia, sendo que os miúdos Phillip Alford e Mary Badham, sobretudo esta última, arrancam trabalhos inesquecíveis. Curiosidade: o misterioso e inquietante vizinho Boo Radley (nome que faz relembrar o mítico Boogeyman, o monstro dos contos de terror que servia para amedrontar as crianças) é interpretado por Robert Duvall, num dos seus primeiros trabalhos no cinema. Também ele irá protagonizar uma das cenas mais curiosas de um ponto de vista jurídico: um xerife resolve abafar um crime, transformando-o em acidente, pois de outra forma seria como “matar um rouxinol”, afinal a grande, ou uma das grandes, conclusões desta obra magnífica, onde a banda sonora e a fotografia a preto e branco muito contribuíram para o seu estrondoso sucesso.
Robert Mulligan (1925–2008) foi um brilhante realizador norte-americano, de televisão e cinema, tendo deixado um importante conjunto de obras de fundo humanista, excelentes retratos de jovens e inspiradas reconstituições de ambientes sociais, entre os quais este “To Kill A Mockingbird” (1962), mas também “Amar Um Desconhecido” (Love with the Proper Stranger,1963), “O Estranho Mundo de Daisy Clover” (Inside Daisy Clover,1965), “Errando pelo Caminho” (Baby the Rain Must Fall, 1965), “O Último Degrau” (Up the Down Staircase, 1967), “Emboscada na Sombra” (The Stalking Moon, 1969), “Verão de 42” (Summer of '42, 1971), “Em Busca da Felicidade” (The Pursuit of Happiness, 1971), “O Outro” (The Other, (1972), À Mesma Hora para o Ano Que Vem” (Same Time, Next Year, 1978) ou “O Homem da Lua” (The Man in the Moon, 1991). Durante os anos 60, colaborou várias vezes com o seu amigo produtor Alan J. Pakula.

NA SOMBRA E NO SILÊNCIO
To Kill a Mockingbird (original title)

Realização: Robert Mulligan (EUA, 1962); Argumento: Horton Foote, segundo romance de Harper Lee ("To Kill a Mockingbird"); Produção: Alan J. Pakula; Música: Elmer Bernstein; Fotografia (p/b): Russell Harlan; Montagem: Aaron Stell; Direcção artística: Henry Bumstead, Alexander Golitzen; Decoração: Oliver Emert;  Guarda-roupa: Rosemary Odell; Maquilhagem: Larry Germain, Bud Westmore, Frank Prehoda, Lavaughn Speer; Direcção de produção: Edward Muhl, Ernest B. Wehmeyer; Assistentes de realização: Joseph E. Kenney, Terry Morse Jr., Charles R. Scott Jr.; Departamento de arte: Gene Johnson, Fred Knoth; Som: Corson Jowet, Waldon O. Watson, Charlie Cohn, James Curtis, James V. Swartz;  Efeitos Especiais: Don Wolz; Companhias de Produção: Universal International Pictures, Pakula-Mulligan, Brentwood Productions; Intérpretes: Gregory Peck (Atticus Finch), John Megna (Dill Harris), Frank Overton (Sheriff Heck Tate), Rosemary Murphy (Maudie Atkinson), Ruth White (Mrs. Dubose), Brock Peters (Tom Robinson), Estelle Evans (Calpurnia), Paul Fix (Juiz Taylor), Collin Wilcox Paxton (Mayella Violet Ewell), James  (Bob Ewell), Alice Ghostley (Tia Stephanie Crawford), Robert Duvall (Boo Radley), William Windom (Mr. Gilmer), Crahan Denton (Walter Cunningham Sr.), Richard Hale (Nathan Radley), Mary Badham (Scout), Phillip Alford (Jem), R.L. Armstrong, Bobby Barber, Danny Borzage, Jess Cavin, Steve Condit, David Crawford, Jamie Forster, Charles Fredericks, Jester Hairston, Chuck Hamilton, Kim Hamilton, etc Duração: 129 minutos; Classificação etária: M7 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Universal Pictures Portugal, Lda.; Data de estreia em Portugal: 14 de Abril de 1965.

12 DE ABRIL DE 2017: FÚRIA DE VIVER

segunda-feira, 3 de abril de 2017

5 DE ABRIL DE 2017: O GRANDE GATSBY


O GRANDE GATSBY 
de Jack Clayton (1974) a Baz Luhrmann (2013)


The Great Gatsby”, do norte-americano F. Scott Fitzgerald, é considerado um dos grandes romances do século XX e um dos que melhor retrata o brilho e o glamour dos anos 20 e, ao mesmo tempo, todas as contradições sociais e morais que esta época encerrou e que haveria de desencadear primeiramente a Grande Depressão da década de 30 e, posteriormente, o conturbado período das ditaduras, sobretudo na Europa.
Publicado em 1925, tem como cenário Nova Iorque e Long Island, decorria o verão de 1922. A América sai do pesadelo da I Guerra Mundial, atravessa a Lei Seca, a proibição da venda de bebidas alcoólicas, o aparecimento do gangsterismo em grande escala, deixa-se levar pelas fortunas que se fazem e desfazem num ápice, sofre o boom bolsista, a efervescência financeira, as bolhas imobiliárias, dança ao som da explosão do jazz e da loucura das grandes festas, fervilha com a euforia de uma sociedade a viver na base de uma sensualidade desbragada, de um materialismo desenfreado, e extasia-se com a criatividade das artes, da literatura ao cinema, da música ao teatro, da pintura à arquitectura. Vive-se perigosamente ao volante de carros que atingem os 40 ou 50 quilómetros / hora, de aviões, de transatlânticos, consome-se whisky e drogas, viaja-se até Paris para se estar actualizado com as últimas do mundo. Fitzgerald passa por lá, tal como Hemingway, e tantos outros.
Nick Carraway, o narrador de “The Great Gatsby”, é um bom retrato deste escritor fascinado pelas luzes e os sons, pela vertigem e os amores funestos, pelo glamour dos milionários e do ambiente, mas, ao mesmo tempo, ciente de que tudo isso representava algo de profundamente sintomático de uma decadência moral e de uma gritante desigualdade social.

Curiosamente, “The Great Gatsby” não conheceu desde logo o sucesso de que hoje goza. Apesar de adaptado ao teatro, em 1926, numa produção do Ambassador Theater, da Broadway, escrita para palco por Owen Davis, encenada por George Cukor, e até ter tido uma versão cinematográfica, “O Grande Senhor Gatsby”, igualmente de 1926, realizada por Herbert Brenon, com Warner Baxter, Lois Wilson e Neil Hamilton, nos principais papéis. Mas a recepção popular foi tímida, e nas décadas seguintes continuou a não ser devidamente valorizado. Só depois da II Guerra Mundial, quando voltou a ser reeditado, entre 1945 e 1953, ganhou o folego que presentemente lhe é dedicado. Sem qualquer tipo de hesitação se pode afirmar que este é não só um romance de uma geração, mas também uma obra que ultrapassa gerações e períodos e se instala na qualidade de clássico. Li-o várias vezes ao longo da vida, reli-o agora por causa da estreia do filme de Baz Luhrmann, e o encantamento supera-se, a cada nova leitura. A delicadeza da escrita, a inteligência da estrutura narrativa, a forma subtil, mas acutilante, como situa personagens e situações, a fina descrição das contradições sociais, afloradas sem demagogia, mas delimitadas com minucia, tudo isto faz do romance uma obra admirável, única.
Nick Carraway, o narrador, o escritor que nos conta o que vamos ler, é um jovem corrector de bolsa que vem trabalhar para Nova Iorque e se instala em Long Island, numa casa vizinha do palacete de um excêntrico milionário, Jay Gatsby. Um braço do Atlântico separa-o da mansão de Tom Buchanan, um rico jogador, casado com Daisy, prima de Nick.
Gatsby tem um passado nebuloso, parece que passou por Oxford, enriqueceu possivelmente à custa das bebidas proibidas, dá festas sumptuosas, todos os sábados, para onde convergem centenas de pessoas, a maioria das quais sem convite. Sabe-se depois que Gatsby ama há muito Daisy e que estas festas são uma forma de “chamar” Daisy para junto de si, o que não acontece. Ela não comparece. Para se fazer encontrar com ela, pede a Nick que improvise um chá em sua casa, tido como ocasional. O drama sentimental explode e será o centro nevrálgico do romance, mas, por detrás desta má gestão das emoções, há todo um retrato de uma sociedade que é particularmente bem dado, em pinceladas imprecisas, mas extremamente justas.

F. Scott Fitzgerald é um escritor admirável, a sua obra não é vasta, mas é inesquecível. Nascido em 1896 no Minnesota, haveria de morrer novo, em Hollywood, no ano de 1940. A sua vida foi acidentada, o casamento com Zelda Sayre conflituoso, e terminaria em tragédia, com o internamento dela num hospício, e os excessos, sobretudo o álcool, haveriam de precipitar a sorte do escritor. Para lá desse fabuloso “The Great Gatsby”, assinou ainda “Este Lado do Paraíso”, “Belos e Malditos”, “Terna é a Noite”, “Contos da Era do Jazz”, e “The Last Tycoon” (O Último Magnata), este publicado postumamente, em 1941.
“The Great Gatsby” conheceria ainda duas outras adaptações ao cinema, antes desta que se encontra presentemente em salas de estreia. Uma de 1949, “Cruel Mentira”, no seu título português, uma realização de Elliott Nugent, interpretada por Alan Ladd, Betty Field, Macdonald Carey, outra de 1974, dirigida pelo britânico Jack Clayton, com argumento escrito por Francis Ford Coppola e um elenco de luxo, Robert Redford, Mia Farrow, Bruce Dern. Uma obra bastante interessante.

Baz Luhrmann, que assina a última versão, apresentada em 3D, é australiano e um cineasta muito particular. A sua filmografia é reduzida em títulos, mas exuberante em resultados. Há quem goste, quem admire profundamente, quem não tolere. “Strictly Ballroom” (Vem Dançar!), data de 1992, é a sua primeira longa-metragem como realizador. Seguem-se “Romeo + Juliet” (1996), “Moulin Rouge!” (2001) e “Austrália” (2008). Excessivo e luxuriante nas suas criações, era com muita curiosidade que se esperava a sua versão de “The Great Gatsby” (2013), com Leonardo DiCaprio e Carey Mulligan, rodada em grande parte na Austrália, precisamente em Sidney.
O resultado foi recebido de forma catastrófica por grande parte da crítica, mas julgo que existe um enorme preconceito e muita má vontade neste juízo. A obra, sobretudo vista em, 3D, é muito desequilibrada, surpreendente, inquietante, mas globalmente muito interessante e fascinante pelas propostas e pelos resultados conseguidos. O arranque não é brilhante, durante quinze a vinte minutos cheguei a temer o pior, mas depois entramos no espírito da proposta, mergulhamos na nebulosa estilística e começa-se a perceber as intenções do cineasta, que cria um produto absolutamente novo: não é um filme tradicional, nem sequer se aproxima dos vulgares filmes em 3 D, onde os efeitos se impõem por si só.
Em “O Grande Gatsby”, as 3D associam-se a outros processos para oferecerem uma profundidade de campo, um desmultiplicar de planos que torna a obra muito sugestiva. Neste, como em outros aspectos, lembra-nos “O Mundo a Seus Pés”, de Orson Welles. Ao que assistimos são imagens que se estendem no espaço, uma banda sonora que se multiplica, com narração e vozes das personagens, uma história que vem do passado e se estende para o futuro, ancorada num frágil presente, são visões de uma estrutura social que só pode tender à tragédia, com a sofisticada existência dos milionários, ricos e belos, mas igualmente malditos, e um coro de operários e desprotegidos que os cerca e os caracteriza obviamente como inúteis e fúteis. E perigosos.
As 3D funcionam como complemento mais visível desse espraiar por diferentes planos: temos personagens em primeiro plano, palacetes ao fundo, o mar a intervalá-los, temos pedaços de folhas de papel rasgados, letras e frases que flutuam entre o espectador e o ecrã. Um ou outro efeito pode ser de gosto duvidoso, mas de um modo geral, o filme consegue impor um estilo e arrancar sequências notáveis, cenas de rua com multidões, Time Square em dia de romaria, festas de arromba, mas também estradas negras povoadas de operários trabalhando nas obras, enquanto os carros brilhantes dos milionários as cruzam em alta velocidade, ignorando tudo o que não seja a sua febre de viver, a todo o custo.
Há muita cinefilia dispersa ao longo da obra. Um cadáver a boiar numa piscina relembra obviamente “O Crepúsculo dos Deuses” e a própria figura do escritor se aproxima da protagonizada por William Holden. Orson Welles não deixa de ser sugerido, até pela composição de Leonard Di Caprio.
Baz Luhrmann não terá criado a obra-prima que este filme poderia ter sido, mas o seu arrojo e as suas propostas, juntamente com o trabalho dos actores e a competência dos técnicos, merecem seguramente a nossa atenção. É um relativo falhanço, mas um glorioso relativo falhanço.



O GRANDE GATSBY
Título original: The Great Gatsby
Realização: Baz Luhrmann (Austrália, EUA, 2013); Argumento: Baz Luhrmann, Craig Pearce, segundo romance de F. Scott Fitzgerald; Produção: Lucy Fisher, Catherine Knapman, Baz Luhrmann, Catherine Martin, Anton Monsted, Douglas Wick; Música: Craig Armstrong; Fotografia (cor): Simon Duggan; Montagem: Jason Ballantine, Jonathan Redmond, Matt Villa; Casting: Nikki Barrett, Ronna Kress; Design de produção: Catherine Martin; Direcção artística: Damien Drew, Ian Gracie, Michael Turner; Decoração: Beverley Dunn; Guarda-roupa: Catherine Martin; Maquilhagem: Catherine Biggs, Lara Jade Birch, Maurizio Silvi, Brydie Stone, Lesley Vanderwalt, Kerry Warn; Direcção de produção: Bill Draper, Afnahn Khan, Alex Taussig; Assistentes de realização: Maree Cochrane, Luke Doolan, Emma Jamvold, Jennifer Leacey, Glenn Ruehland, Samantha Smith, Eddie Thorne; Departamento de arte: Sean Ahern, Colette Birrell, Matt Connors, Anna Faigen, Michael Horvath; Som: Wayne Pashley, Fabian Sanjurjo; Efeitos especiais: Dan Oliver; Efeitos visuais: Tony Cole, Daniel James Cox, Joyce Cox, Chris Godfrey, Jeremy Kelly-Bakker, Barry St. John, Rebecca Vujanovic; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Village Roadshow Pictures, A&E Television Networks, Bazmark Films, Spectrum Films, Red Wagon Entertainment; Intérpretes: Leonardo DiCaprio (Jay Gatsby), Tobey Maguire (Nick Carraway), Carey Mulligan (Daisy Buchanan), Joel Edgerton (Tom Buchanan), Isla Fisher (Myrtle Wilson), Jason Clarke (George B. Wilson), Amitabh Bachchan (Meyer Wolfsheim), Elizabeth Debicki (Jordan Baker), Jack Thompson (Henry C. Gatz), Adelaide Clemens (Catherine), Brendan Maclean (Ewing Klipspringer), Kasia Stelmach (Geraldine Peacock), Callan McAuliffe (jovem Jay Gatsby), Gus Murray (Teddy Barton), Kim Knuckey (Senador), Stephen James King (Nelson), Alison Benstead (Anita Loos), Max Cullen, Joel Amos Byrnes, Chris Proctor, Kate Mulvany, Gemma Ward, Jens Holck, Sam Davis, Brenton Prince, Elliott Collinson, Conor Fogarty, Amitabh Bachchan, Steve Bisley, Richard Carter, Jason Clarke, Adelaide Clemens, Vince Colosimo, Max Cullen, Mal Day, Elizabeth Debicki, Lisa Adam, etc. Duração: 142 minutos: Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 16 de Maio de 2013.



O GRANDE GATSBY
Título original: The Great Gatsby
Realização: Jack Clayton (EUA, 1974); Argumento: Francis Ford Coppola, segundo romance de F. Scott Fitzgerald;

Produção: David Merrick, Hank Moonjean; Música: Nelson Riddle; Fotografia (cor): Douglas Slocombe; Montagem: Tom Priestley; Design de produção: John Box; Direcção artística: Robert W. Laing, Gene Rudolf; Decoração: Peter Howitt, Herbert F. Mulligan; Guarda-roupa: Theoni V. Aldredge; Casting: Irene Lamb; Maquilhagem: Ramon Gow, Gary Liddiard, Charles E. Parker; Direcção de produção: Norman I. Cohen, Peter Price; Assistentes de realização: Alex Hapsas, David Tringham, Michael Green, Nigel Wooll, Jeanie Sims; Departamento de arte: Bruno Robotti; Som: Ken Barker, Terry Rawlings, Brian Simmons, Rowland Fowles, Graham V. Hartstone, Otto Snel; Efeitos especiais: Tony Parmelee; Companhias de produção: Paramount Pictures, Newdon Productions; Intérpretes: Robert Redford (Jay Gatsby), Mia Farrow (Daisy Buchanan), Bruce Dern (Tom Buchanan), Karen Black (Myrtle Wilson), Scott Wilson (George Wilson), Sam Waterston (Nick Carraway), Lois (Jordan Baker), Howard Da Silva (Meyer Wolfsheim), Roberts Blossom (Mr. Gatz), Edward Herrmann, Elliott Sullivan, Arthur Hughes, Kathryn Leigh Scott, Beth Porter, Paul Tamarin, John Devlin, Patsy Kensit, Marjorie Wildes, Blain Fairman, Bob Sherman, Norman Chancer, Regina Baff, Janet Arters, Louise Arters, Sammy Smith, Brooke Adams, James Berwick, Sean Collins, Tom Ewell, John Franchi, Linda Hamil, Duncan Inches, Nick Lucas, Jerry Mayer, Vincent Schiavelli, Mildred Shay, Charles Silvern, etc. Duração: 144 minutos: Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 16 de Maio de 2013. 

sexta-feira, 17 de março de 2017

29 DE MARÇO DE 2017: O GIGANTE


O GIGANTE (1956)

“Giant” é um daqueles painéis históricos que, partindo da gesta de uma família, nos procura dar o retrato das transformações sociais por que passou a sociedade norte-americana durante um certo lapso de tempo. Estamos no Texas, em plena primeira metade do século XX, e o centro de atenção é Benedict Reata, um rancho, desde sempre pertencente à família de Jordan Benedict (Rock Hudson), um rancheiro à moda antiga, cuja principal fonte económica é o gado. São milhares e milhares de hectares a perder de vista, com um pequeno e miserável “Pueblo” mexicano lá incrustado, onde vivem os empregado e respectivas famílias. Mas este é apenas um dos retratos da América. No início do filme, Jordan Benedict encontra-se no outro extremo dos EUA, em Mariland, no leste, onde vai comprar um puro-sangue indomável. Jordan chega a este pedaço de terra americana que relembra os verdejantes campos de Inglaterra com a única ideia de trazer o cavalo para o seu rancho, mas acaba por fazer-se acompanhar, no regresso, igualmente pela filha do proprietário, a jovem e bela Leslie Lynnton (Elizabeth Taylor), uma mulher totalmente diferente das do Texas, educada, sensível, independente, que olha com alguma indignação as condições de vida dos mexicanos que vai encontrar. Mas não só isso. Em Reata, quem dirige a casa com mão de ferro é Luz (Mercedes McCambridge), a irmã de Jordan, e também entre ambas a harmonia não é completa. Muito pelo contrário. De resto, um dos empregados de Reata, Jett Rink (James Dean), é insolente e pouco cooperante, armazenando consecutivas ameaças de despedimento que, a partir daí, serão atenuadas pela interferência de Leslie que sente alguma compreensão por este “rebelde” aqui com causa.
Estamos na década de 20, e o filme irá prolongar-se até bem depois do final da II Guerra Mundial. Jett Rink acabará por herdar uma pequena propriedade a que arrogantemente irá chamar “Little Reata” e de onde, num lampejo de sorte e perseverança, irão brotar dezenas e dezenas de poços de petróleo. Aqui se instala, na segunda parte desta epopeia familiar, um novo e complexo confronto, entre o tradicional rancheiro de gado e o novo proprietário de petróleo, que num ápice se transforma num agressivo capitalista.


Há, portanto, vários assuntos mesclados nesta história que parte de um “best-seller” de Edna Ferber e que se desenvolve ao longo de mais de três horas que o talento de George Stevens e dos seus colaboradores (técnicos e actores) impõe que se acompanhe com singular interesse. Desde o esboço familiar até ao conflito final que opõe Jordan e Jett, “O Gigante” mobiliza diferentes acções e debate várias questões, todas elas interessantes e pertinentes, quer a um nível individual (a relação Jordan e Leslie, por exemplo), familiares (Leslie e Luz, particularmente, mas depois também, e ainda com maior clareza, o desencontro de gerações, entre Jordan e os filhos) ou sociais (onde o racismo e a exploração dos empregados sobressai, numa primeira etapa, para depois se agudizar entre conceitos diversos de exploração da terra e de erguer sobre ela uma economia capitalista). Parte-se, portanto, de um microcosmos para se atingir uma análise mais vasta que tem por meta a própria América e os seus valores (nalguns aspectos a negação de valores, na descriminação entre raças, entre homem e mulher, entre patrões e empregados, etc.).
O filme de George Stevens tem um olhar reformista, acredita que a sociedade vai evoluindo lentamente para melhores e mais justos tempos, e tem em conta que os “maus costumes” serão certamente castigados e as boas práticas acabarão por se impor. É uma visão americana por excelência, de quem acredita numa determinada concepção de democracia que caminha inexoravelmente para o progresso e o bem-estar colectivo. Haverá vozes que não acreditam nesta concepção, mas o filme de Stevens mostra-se bem intencionado nos seus propósitos e não escamoteia nem problemas dramáticos nem adversidades concretas, na sua ânsia por soluções mais justas. Resta ainda sublinhar que, sendo uma obra de 1956, “O Gigante” participa de um olhar novo que surge na sociedade norte-americana e que irá explodir na década seguinte com as lutas de emancipação de negro e das mulheres, a assunção do “flower power” e dos movimentos juvenis e universitários.  
Stevens é um cineasta brilhante nalguns dos seus momentos e “O Gigante” ostenta uma narrativa sólida e um métier não só eficaz como por vezes inspirado. Estamos num tempo em que o cinema clássico de Hollywood procurava contar histórias servindo-se particularmente do poder da imagem, das elipses sugeridas, das metáforas adivinhadas e neste aspecto a obra é sintomática deste período brilhante, servida por uma voz pessoal que se sustenta ao longo de uma filmografia carregada de sucessos. Esta obra, que seria a mais cara alguma vez produzida pela Warner até essa altura (quase 5,5 milhões de dólares), iria arrecadar mais de 35 milhões na sua estreia, colocando-se ao lado de alguns outros gigantes de idênticas intenções (a começar desde logo por “O Nascimento de Uma Nação” de Griffith, passando por “E Tudo o Vento Levou”, de Fleming, para terminar, décadas depois, no “Era Uma Vez na América”, de Leoni).


Para solidificar ainda mais este desígnio de filme de culto e de obra charneira de uma determinada época, “Giant” viu acrescentar-lhe uma efeméride de difícil esquecimento: foi a última obra interpretada por James Dean, que, pouco depois de ter terminado a rodagem, morreria tragicamente num acidente de automóvel. O filme só seria estreado meses depois, pesando sobre ele essa carga trágica que transformaria para sempre James Dean num ícone norte-americano e mundial. Mas a película conta com um excelente naipe de actores, entre os quais Rock Hudson, Elizabeth Taylor, Carroll Baker, Mercedes McCambridge, Chill Wills, Dennis Hopper, Sal Mineo, Earl Holliman, etc. Curiosamente, sobretudo ao nível do elenco mais jovem, alguns dos actores que tinham aparecido ao lado de James Dean em “Fúria de Viver”.
Na cerimónia de atribuição dos Oscars referentes a esse ano, apenas George Stevens ganharia o de Melhor Realizador, mas a obra seria ainda nomeada para Melhor Filme, Melhor Argumento Adaptado (Fred Guiol e Ivan Moffat), Melhor Actor (James Dean, nomeação póstuma, e Rock Hudson), Melhor Actriz Secundária (Mercedes McCambridge), Melhor Música (Dimitri Tiomkin), Melhor Direcção Artística (Boris Leven e Ralph S. Hurst); Melhor Guarda-Roupa (Moss Mabry e Marjorie Best) e Melhor Montagem (William Hornbeck, Philip W. Anderson e Fred Bohanan). Nesse ano, “A Volta ao Mundo em 80 Dias” e “O Rei e Eu”, obras interessantes, mas menores ao lado de “O Gigante”, ganhariam as honras da noite.

O GIGANTE
Título original: Giant

Realização: George Stevens (EUA, 1956); Argumento: Fred Guiol, Ivan Moffat, segundo romance de Edna Ferber; Produção: Henry Ginsberg, George Stevens; Música: Dimitri Tiomkin; Fotografia (cor): William C. Mellor; Montagem: William Hornbeck, Robert Lawrence; Casting: Hoyt Bowers; Design de produção: Boris Leven; Decoração: Ralph S. Hurst; Guarda-roupa: Marjorie Best; Maquilhagem: Gordon Bau, Pat Westmore; Direcção de produção: Tom Andre; Assistentes de realização: Fred Guiol, Russell Llewellyn, Joseph E. Rickards; Som: Earl Crain Sr., C.J. 'Mickey' Emerson; Efeitos especiais: Ralph Webb: Efeitos visuais: Jack Cosgrove; Companhias de produção: Giant Productions, Warner Bros. Pictures; Intérpretes: Elizabeth Taylor (Leslie Benedict), Rock Hudson (Jordan 'Bick' Benedict Jr.), James Dean (Jett Rink), Carroll Baker (Luz Benedict II), Jane Withers (Vashti Snythe), Chill Wills (Tio Bawley), Mercedes McCambridge (Luz Benedict), Dennis Hopper (Jordan Benedict III), Sal Mineo (Angel Obregón II), Rod Taylor (Sir David Karfrey), Judith Evelyn (Mrs. Nancy Lynnton), Earl Holliman ('Bob' Dace), Robert Nichols, Paul Fix, Alexander Scourby, Fran Bennett, Charles Watts, Elsa Cárdenas, Carolyn Craig, Monte Hale, Sheb Wooley, Mary Ann Edwards, Victor Millan, Mickey Simpson, Pilar Del Rey, Maurice Jara, Noreen Nash, Ray Whitley, Napoleon Whiting, etc. Duração: 201 minutos; Distribuição em Portugal: Warner Bros. (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Abril de 1957.